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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Corrupção e democracia

A corrupção impõe ameaça com várias faces: difusa, estrutural, cultural. Não podemos desperdiçar a oportunidade de combatê-la

A palavra “corrupção” vem do latim “corruptus”, que significa “quebrado em pedaços”. Quem corrompe, portanto, ou quem se deixa corromper, acha-se despedaçado. Perde a sua inteireza.

Em artigo no Portal do Movimento contra a Corrupção, a Professora Rita Biason, da UNESP, resume a história da corrupção no Brasil, a começar pelos funcionários coloniais do Século XVI que exportavam por conta própria especiarias, tabaco, metais e peças preciosas. Vieram a seguir, ao longo de nossa vagarosa história, a traficância de escravos, a manipulação de contratos para obras públicas, a corrupção eleitoral no Império, o voto de cabresto na República, o “rouba mas faz”, escândalos financeiros no período militar, o “esquema PC" no Governo Collor e tantos outros.

O Brasil enfrenta atualmente outro ciclo de corrupção. A diferença em relação aos anteriores está em que hoje o país vive sob um regime democrático. Graças à abrangência, à instantaneidade e à liberdade dos meios de comunicação, torna-se muito mais difícil, senão impossível, ocultar os fatos da sociedade, como ocorreu em diversos momentos no passado. E ainda: a sociedade não está mais disposta a aceitar a corrupção como inevitável.

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A democracia não se constrói de um dia para outro. Foi longo nosso trajeto após o final do regime militar. Passamos por várias etapas.

Em 1988, quando foi aprovada a Constituição em vigor, abriu-se a primeira fase do processo: a construção da democracia formal através de um arcabouço político que, com todas suas possíveis imperfeições, criou uma ordem jurídica e institucional democrática.

Diferentemente de outros momentos na trajetória do Brasil, fomos adiante. Perseveramos. Superamos obstáculos graves, como o impeachment do Presidente Collor.

Nos Governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, passamos pela segunda fase da construção da democracia: a estabilidade macroeconômica. Com o controle da inflação e o crescimento sustentado, o Brasil pode recuperar a possibilidade de crescer e gerar riqueza em bases equitativas.

Chegamos então à terceira fase da nossa progressiva trajetória de construção democrática: a distribuição de renda e a ascensão social. Iniciada no período FHC, a distribuição de renda ganhou ainda maior ímpeto na administração Lula. Os benefícios das duas fases anteriores tornaram-se evidentes. A sociedade deu-se conta de que, contrariamente a momentos históricos anteriores, foi possível crescer e distribuir em democracia.

Estamos vivendo nos anos mais recentes a quarta fase do nosso processo de construção democrática: o combate à corrupção.

A sociedade brasileira deu-se finalmente conta de que os possíveis ganhos obtidos sob regimes autoritários são por definição efêmeros e acabam desmoronando por falta de legitimidade. Deu-se igualmente conta de que não há democracia capaz de se considerar consolidada se tiver de conviver ao mesmo tempo com práticas endêmicas de corrupção. Tanto as práticas ligadas simplesmente ao enriquecimento ilícito, quanto as que pretendem se auto-justificar por motivos ligados ao financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais. Todas se nutrem e se reforçam reciprocamente. Todas distorcem gravemente a democracia.

A democracia, dizia Churchill, é a pior forma de governo, exceto todas as demais. Várias imagens são volta e meia utilizadas por analistas para descrever as dificuldades de se sustentar uma democracia: frágil como como uma flor que precisa ser regada cotidianamente; como orquídeas, democracias não se constroem, são na realidade produto de uma longa e complicada evolução orgânica (George Will); a experiência da democracia é como a experiência da vida: sempre cambiante, infinitamente variável, algumas vezes turbulenta, mas ainda mais valiosa quando testada pela adversidade (Jimmy Carter).

A corrupção impõe hoje ao Brasil uma ameaça com várias faces: difusa, estrutural, cultural. Embora sempre presente na nossa história, a ameaça da corrupção talvez jamais tenha assumido uma dimensão tão extensa e profunda. Não conseguimos superá-la no passado. Talvez porque jamais tivemos as condições de que dispomos hoje. Não podemos de modo algum desperdiçar esta oportunidade.

Pensemos não tanto nas rixas políticas, nas divisões ideológicas, neste ou naquele partido, neste ou naquele líder político. Mas sim no país, na possibilidade única em nossa história de extirpar essa ameaça fatal a nossas instituições democráticas.

Não podemos justificar os erros do presente com as faltas do passado. Se agirmos agora poderemos assegurar nossa democracia e finalmente consolidá-la. Se não, voltaremos atrás e estaremos condenados como Sísifo a empurrar a pedra da corrupção até o alto da montanha, só para vê-la despencar a cada vez que estivermos perto de atingi-lo.

Drummond, com sua mineira economia de palavras, descreve a angústia da frustração num dos seus mais conhecidos textos:

“E agora José?

A festa acabou,

o povo sumiu

A noite esfriou

O dia não veio

Não veio uma utopia

E tudo acabou.”

Se não formos capazes de extirpar definitivamente a corrupção institucionalizada de nossa vida política e administrativa, estaremos despedaçados, como os antigos romanos, perderemos nossa inteireza, tudo acabará, a utopia não nos sustentará e José não saberá o que fazer.

É grave!

Luis Felipe de Seixas Corrêa é diplomata, chefiou a missão do Brasil na ONU e na OMC. Foi por duas vezes secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (1992 e 1999-2001).

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