Novas Cruzadas
Países da aliança anglo-saxã compartilham uma visão própria do mundo, sendo capazes de atuar coordenadamente em todas as crises que possam ameaçar sua supremacia
Desde que a Inglaterra derrotou definitivamente, em Waterloo, "o poder latino” da França de Napoleão, o mundo vem sendo monitorado por uma Aliança anglo-saxã. Originalmente liderada pelo Reino Unido, esta aliança enfrentou e venceu sucessivamente o poder imperial germânico, o poder nazista alemão e o poder comunista soviético. Enfrenta atualmente, desde o ataque ao World Trade Center, o poder do radicalismo islâmico. A tutela da Aliança anglo-saxã passou do Reino Unido aos EUA e incorpora o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Um arco que cobre o mundo da Europa à Asia, do Atlântico ao Pacífico.
Estes cinco países compartilham uma visão própria do mundo, sendo capazes de atuar coordenadamente em todas as crises que possam ameaçar sua supremacia. Trocam informações, intelligence e segredos de Estado. Coordenam-se em tempo real, tanto para enfrentar crises que possam ameaçá-los, quanto para consolidar a ordem internacional à sua feição. Onde quer que interesses vitais de um estejam ameaçados, os cinco se consultam para articular as respostas necessárias. Entendem-se prioritariamente com a União Europeia. Na ONU, na OTAN, no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial e na Organização Mundial do Comércio não há tema de governança global que escape a seu controle.
Esforçam-se estes países desde há muitos anos para enfrentar a ameaça do radicalismo islâmico, que os atinge diretamente. Algo que pode ser entendido como uma Cruzada ao revés. Trata-se de uma luta que transcorre à vista de todos, ora na Palestina, no Oriente Médio, no Iraque, no Afeganistão, no Iêmen, ora nos países da Aliança, ora no território europeu, como se viu recentemente na França. É uma confrontação incessante. Como, em determinadas épocas, foi o conflito ideológico e militar entre o Ocidente e o poder comunista, com episódios cruentos na Coréia, no Vietnã, no Congo, no Cambodja e intervenções em diversos países da América Latina nos tempos da guerra fria e da confrontação ideológica. Estende-se hoje a países do Mediterrâneo, da África e quem sabe por donde mais.
Na América Latina não estamos talvez tão diretamente afetados por esse confronto. Mas não deixamos de sofrer as consequências
Havia até bem pouco – em alguns setores acredita-se que ainda possa haver - preocupação com o papel da China, a expressão do poder asiático com supostas pretensões hegemônicas. Sou dos que creem que a China se transformou – com seu extraordinário desenvolvimento econômico, social, financeiro, tecnológico – num parceiro cujos interesses permanentes tornaram-se próximos dos interesses anglo-saxões. A China detém quantidade avassaladora da dívida externa norte-americana e deve grande parte de seu ímpeto das últimas décadas ao mercado norte-americano. Não lhe interessa romper essa aliança tácita.
O que efetivamente ameaça a paz, a estabilidade e a segurança do poder anglo-saxão e do mundo em geral é o extremismo islâmico, no qual se reúnem dois elementos pelos quais os homens historicamente se dispuseram e se dispõem ainda a morrer: pátria (no caso específico da Palestina) e religião. As ameaças tornaram-se ainda mais difíceis de controlar depois que as organizações radicais islâmicas passaram a seguir um modelo difuso de lideranças dispersas, de difícil identificação, algo que vem sendo denominado de grassroots jihadism (jihadismo de base), por oposição a linhas de comando hierarquizadas. Empreendem uma nova Cruzada. Uma Cruzada ao revés. De vítimas históricas do mundo ocidental, buscam tornar-se algozes utilizando a violência de que foram vítimas séculos atrás.
Será uma confrontação prolongada, que põe em risco não só a integridade e a segurança do Estado de Israel (muito estreitamente ligado à Aliança anglo-saxã), mas também a estabilidade do sistema internacional como um todo. Será uma confrontação cada vez mais difusa e imprevisível: um confronto de culturas e civilizações vivido em tempo real no mundo todo graças à instantaneidade dos meios de comunicação.
Na América Latina não estamos talvez tão diretamente afetados por esse confronto. Mas não deixamos de sofrer consequências, como os sucessivos altas e baixas dos preços do petróleo, e de partilhar das preocupações de segurança e humanitárias globais. Temos, portanto, interesse em atuar na medida de nossas possibilidades, tanto diretamente, quanto em organizações internacionais, para controlar as tensões e atenuar, se não resolver, as questões que provocam os extremismos de parte a parte.
Um bom ponto de partida – que poderia ser considerado pelo Brasil e pelos países da região em geral – seria o de combater com redobradíssima intensidade o tráfico de armas convencionais. De onde provêm as camionetas fortemente armadas com metralhadoras e mísseis que circulam como mini-tanques em mão de extremistas? Avançar nessa direção não resolveria os problemas envolvidos, mas atenuaria certamente o seu agravamento. Por que não se dedicam a esse tema os integrantes de países anglo-saxões e seus aliados da União Europeia? Por que não poderia a América Latina tomar alguma iniciativa nesse sentido na ONU e em outros foros? Já se tentou antes. É hora de insistir.
Luis Felipe de Seixas Corrêa é diplomata, chefiou a missão do Brasil na ONU e na OMC. Foi por duas vezes secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (1992 e 1999-2001).
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.