_
_
_
_

Hawking sobre duas pernas

Primeira esposa do cientista mostra em livro retrato intenso de seus anos de formação

Javier Sampedro
O cientista Stephen Hawking e a escritora Jane Hawking no dia de seu casamento, em 1965.
O cientista Stephen Hawking e a escritora Jane Hawking no dia de seu casamento, em 1965.

Pouca gente no planeta Terra não está familiarizada com a imagem de Stephen Hawking, cosmologista, físico teórico, escritor de sucesso, polemista afiado e personagem de Os Simpsons, preso pela esclerose lateral amiotrófica (ELA) a sua cadeira de rodas de alta tecnologia, comunicando-se com o mundo por meio de um sintetizador de voz que embora mude de software mantém — por vontade expressa de seu usuário — seu inconfundível e algo perturbador timbre robótico. A figura é tão familiar que é fácil esquecer que o físico foi até os vinte e poucos anos uma pessoa saudável, que se movia sobre duas pernas, sonhava com um futuro brilhante e se apaixonava como qualquer jovem, ou pelo menos como qualquer jovem educado em Oxford. Sua primeira mulher, Jane Hawking, nos apresenta agora um retrato intenso e vívido daqueles anos de formação intelectual e emocional. E também de tudo que viria depois.

Mais informações
Como é a nova cadeira do físico britânico Stephen Hawking
Stephen Hawking diz que os buracos negros não existem
Um remédio para a esclerose múltipla supera os primeiros testes

A Teoria de Tudo – A Extraordinária História de Jane e Stephen Hawking (Editora Única) não é exatamente uma biografia do físico nem uma autobiografia de sua autora. Consciente de que a celebridade de seu ex-marido não acabará em décadas nem em séculos, a escritora e conferencista Jane Hawking decidiu contar ela própria sua relação com ele antes que “dentro de 50 ou 100 anos alguém invente nossas vidas”. Esta é a narração da mulher que mais bem conheceu Stephen Hawking durante sua juventude e que decidiu se casar com ele, apesar de sua trágica enfermidade. É por isso também a história de um dilema moral: um dos mais graves que um ser humano pode enfrentar ao longo de sua vida.

Hawking pertencia a uma dessas famílias britânicas que parecem tiradas de um filme de Frank Capra, excêntricas, intelectuais e sem preocupação quanto a sua imagem entre os mais ou menos horrorizados vizinhos. O pai, o médico Frank Hawking, não apenas era o único apicultor de Saint Albans, cidade de 60.000 habitantes, 30 quilômetros ao norte de Londres, como também o único a ter um par de esquis. “No inverno”, narra Jane, “passava esquiando em frente a nossa casa, a caminho do campo de golfe”. Os Hawking eram conhecidos em Saint Albans por hábitos como sentar à mesa lendo um livro cada um, e a avó vivia no sótão, que tinha entrada independente pela rua, e só descia em alguma ocasião familiar ou para dar um concerto de piano, instrumento no qual era uma virtuose.

Jane Hawking foi pela primeira vez à casa dos Hawking em 1962, convidada para o aniversário de 21 anos de Stephen, e conheceu ali seus amigos de Oxford, que se consideravam os “aventureiros intelectuais de sua geração”, nas palavras da autora, “dedicados de corpo e alma ao repúdio crítico de todo lugar-comum, à zombaria em relação aos comentários banais, à afirmação de seu juízo independente e à exploração dos confins da mente”. Jane, garota de firmes convicções cristãs e opiniões convencionais, sentiu-se incomodada por toda essa exuberância, mas desde o começo viu em Stephen algo mais que isso, uma natureza empática e independente pela qual, quase sem perceber, ficou apaixonada em poucos meses.

Eddie Redmayne (Stephen Hawking) e Felicity Jones (Jane) em cena de 'A Teoria de Tudo'.
Eddie Redmayne (Stephen Hawking) e Felicity Jones (Jane) em cena de 'A Teoria de Tudo'.©Focus Features/Courtesy Everett Collection (©Focus Features/Courtesy Everett Collection / Cordon Press)

A notícia chegou num sábado de fevereiro de 1963, pela boca de sua amiga Diana: “Olha, soube do Stephen?”. O jovem talento estava havia duas semanas no hospital Saint Bartholomew, porque vinha tropeçando continuamente e não conseguia nem amarrar os sapados. Os médicos tinham diagnosticado a esclerose e previsto dois anos de vida. Jane ficou perplexa. “Ainda jovens o bastante para sermos imortais”, escreveu. Diana lhe disse que Stephen estava muito deprimido e que tinha presenciado a morte do garoto da cama ao lado no hospital. Stephen havia se negado a aceitar um quarto individual, fiel a seus princípios socialistas. As pessoas não mudam.

Mas o livro de Jane Hawking não tem o tom de tragédia, como tampouco teve a já longa vida de Stephen. Os que conhecem de perto o físico ficam invariavelmente perplexos com um detalhe: o muito pouco que lhe importa sua deficiência. Hawking não somente deixou perplexos seus médicos, por suas décadas de sobrevida à ELA –um caso insólito para a medicina—, como demonstra a cada dia que pode levar uma vida tão normal quanto possa ter um físico teórico. Sua produtividade científica o coloca na elite da disciplina, desfruta como qualquer um de um bom jantar com os amigos e nunca renunciou a seu aguçado senso de humor.

A esclerose naqueles primeiros anos tinha alternância entre crises e episódios de relativa normalidade, e pouco depois de sua deprimente entrada no hospital Saint Bartholomew, Jane pôde provar do estrepitoso estilo de guiar de seu noivo. Stephen a levou a Cambridge no gigantesco Ford Zephyr de seu pai — carro que tinha vadeado rios na Cachemira durante a estada indiana da família — no que acabou sendo uma das experiências mais aterrorizantes já vividas pela jovem. “Parecia usar o volante para se erguer e enxergar sobre o painel”, conta Jane. “Eu me atrevia apenas a olhar para a estrada, mas Stephen parecia olhar para tudo, menos para a estrada.” Que tempos, aqueles!

Há muito mais neste livro, um olhar extraordinário sobre a vida de uma figura ainda mais extraordinária: o físico mais popular da nossa época encarando o amor e o destino, os dois buracos negros a que acabam sucumbindo todos os membros desta espécie paradoxal.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_