“Por 34 anos eu não soube se meu marido estava vivo ou morto”
Apenas em 2004 Ilda Martins da Silva pode ter certeza do destino de seu marido Ele havia sucumbido após ser torturado por militares em 1969
Passavam-se 25 dias do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick quando Vírgilio Gomes da Silva, o Jonas, comandante da ação, foi capturado e levado por militares da Operação Bandeirante (Oban) para sede do temido departamento no Paraíso, em São Paulo. No dia seguinte, a operária Ilda Martins da Silva, de 38 anos, mãe de quatro filhos, foi retirada do local onde vivia, em São Sebastião, litoral norte da capital paulista, e levada para a mesma prisão.
Mulher de Virgílio, ela foi brutalmente torturada, com choques, pontapés no peito, tapas e socos, conta ela, hoje uma senhora de 83 anos e profundos olhos azuis, que ainda se enchem de lágrimas quando ela relembra o doloroso passado. Parte de seu relato foi usado pela Comissão Nacional da Verdade e está no relatório final do grupo, entregue na semana passada à presidenta Dilma Rousseff. No último sábado, a aposentada recebeu o EL PAÍS em sua casa, no Jabaquara (em São Paulo), para contar sobre suas lembranças da época da ditadura.
“No dia em que fui presa, levaram três dos meus quatro filhos. Vlademir [8 anos], Virgílio [7 anos] e Isa [quatro meses] foram encaminhados ao Juizado de Menores. O Gregório [2 anos] se salvou porque estava com uma das avós. Quando cheguei na prisão o Virgílio já havia sumido.”
De acordo com relatos de presos, o dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento que lutava contra a ditadura militar, havia apanhado durante o dia anterior inteiro e a madrugada. Campeão de resistência ao aguentar por 72 horas um concurso de dança organizado pela rádio Record em 1957, ele sucumbiu às violentas agressões dos militares e morreu aos gritos de “estão matando um bom brasileiro.”
Ilda ficou oito dias na sede da Oban, depois foi levada para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro de São Paulo, onde ficou um mês. Era uma presa incomunicável. “Não sabia nada dos meus filhos. Os policiais diziam que eu era muito perigosa, então não podia falar com ninguém de fora”, conta ela. “Depois, passaram a dizer que meus filhos estavam com a minha família, o que me desesperou. Achava que eles iam sumir com as crianças e dizer que foi culpa da minha família. Essa era a minha maior tortura. Não saber como eles estavam”, conta.
Foi depois desse mês no Dops, quando foi transferida para o presídio Tiradentes, que Ilda teve uma pista do paradeiro das crianças. “Aproveitei uma menina que estava sendo solta, entreguei para ela o endereço da minha família e pedi para ela ir lá e ver se eles estavam bem. Ela foi, tirou uma fotografia e conseguiu me entregar no presídio”, relembra. Antes de se reunirem à família de Ilda, Vlademir, Virgílio e Isa ficaram em uma casa do Juizado. Os mais velhos contam que eram levados pelos funcionários do local para visitas em residências ricas e oferecidos para adoção. À noite, deitavam embaixo do berço onde a irmã dormia e se amarravam a ele, para evitar que a levassem. Estariam preparados para lutar, se fosse o caso. Ensinados pelo pai a não darem informações sobre a família, causaram desespero quando a irmã do militante finalmente descobriu onde as crianças estavam e foi buscá-las. Os meninos disseram que não a conheciam, que não sabiam quem ela era. Só depois de serem convencidos de que não causariam mal a ninguém, revelaram a verdade e concordaram em ir embora.
Ilda passou quase sete meses no presídio Tiradentes, onde fazia parte do grupo das “donzelas da torre”, presas políticas agrupadas no fundo da prisão, em um local alto, parecido a uma torre. Entre elas estava Dilma Rousseff, com quem a operária chegou a dividir a cela por um breve período. Ficou por mais três meses incomunicável. “Minha família era proibida de me ver”.
Um dia, foi solta. “Me disseram que eu ia embora. Não me explicaram nada.” Não tinha papel, não foi fichada, não foi julgada. “Hoje, vejo que minha prisão foi um sequestro. Eu não tinha nenhum documento que provasse que eu havia sido presa. Quando juntei meus papeis para pedir indenização ao Estado, tive que recorrer a depoimentos das minhas companheiras de cela para provar que estive lá”, conta ela.
“Tenho certeza de que me prenderam porque não queriam que eu fosse atrás do Virgílio, de saber se ele estava vivo ou morto”.
Ao sair do presídio, tentou por algum tempo descobrir o paradeiro do marido, um dos primeiros dos 243 militantes desaparecidos na época, segundo dados do relatório da Comissão da Verdade. Mas percebeu que estava sendo seguida e, com medo, desistiu. Não conseguia emprego. “Sempre me davam uma desculpa: que eu tinha muitos filhos, que eu estava velha. Mas acho que todo mundo sabia da minha história, saiu em todos os jornais na época”.
Mudou-se, então, para o Chile, com a ajuda da ALN, onde ficou um ano. Depois, foi para Cuba, com os quatro filhos, onde recebeu uma casa do Governo, pensão e seus filhos puderam fazer faculdade. Trabalhou como voluntária em diversas atividades e depois como costureira. Permaneceu por 18 anos, período em que só viu a família brasileira uma única vez, em 1986, quando Cuba e Brasil restabeleceram relações diplomáticas.
Durante muito tempo, teve uma certa esperança de reencontrar o marido. O próprio Governo militar negava o assassinato dele. Na prisão dela, os torturadores, mesmo já sabendo da morte dele, diziam que ele havia fugido e, enquanto a torturavam, perguntavam sobre o paradeiro dele. “Todos [os militantes de esquerda] diziam que ele estava morto, mas eu não tinha certeza. Achava que ele pudesse estar pelas ruas, louco em consequência das torturas. Ou que ele estava escondido e um dia ia nos encontrar em Cuba porque ia saber que estávamos lá.”
Em 2004, 34 anos depois da prisão, ela recebeu uma visita do jornalista Mário Magalhães, que preparava a biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia Das Letras, 2012), sobre Carlos Marighella, o fundador da ALN. Ele trazia uma cópia de um documento mantido sob sigilo pela ditadura, o laudo da necropsia de Virgílio, datado de 7 de outubro de 1969.
Ele continha uma fotografia do militante morto, após as torturas, impressões digitais e o nome dele completo, além da causa da morte: traumatismo crânioencefálico por instrumento contundente. Também continha uma lista dos horrores praticados com seu corpo: fratura completa circular com afundamento do osso frontal do rosto, fratura completa da oitava, nona e décima costelas, escoriações nos dois punhos (compatíveis com o pau de arara), hematomas na região escrotal (devido a choques elétricos no local), e outras dezenas de traumas.
O documento dizia ainda que o corpo havia sido encontrado em um terreno baldio. “Era uma forma de dizer que ele tinha sido morto por bandidos. Mas os bandidos eram eles, os militares”, explica Ilda. Apesar de estar plenamente identificado, Virgílio foi enterrado como indigente. E o documento dizia onde: no cemitério de Vila Formosa. Com esse laudo, a família conseguiu obter um atestado de óbito definitivo, ao invés de um de morte presumida. Também conseguiu a exumação de restos mortais no local onde o militante estaria. Feita no final de 2010, Ilda diz que ainda não sabe qual foi o resultado.
O relatório da Comissão da Verdade afirma que até o momento nada foi identificado na exumação. Mas que novas escavações devem ser feitas em locais onde estariam enterrados mais desaparecidos políticos. “Gostaria que houvesse um empenho para se achar a ossada porque isso muda muita coisa. A gente passa a ter um lugar, a saber onde ele está. Enquanto a gente não sabe é uma vida sem fim.”
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