“A pesquisa sobre o meu tio morto me reconectou com a família”
Os sobrinhos de Raul Amaro conseguiram provar após 40 anos a causa real da morte do tio Ele foi assassinado pelas torturas dos militares
Miguel demorou cerca de quatro décadas para chorar em público a morte do irmão, Raul Amaro Nin Ferreira, morto em 1971 no Hospital Central do Exército (HCE) do Rio de Janeiro. O fez em junho deste ano, na frente de uma árvore recém plantada no dia em que Raul completaria 70 anos, se não tivesse sido torturado até sua morte nos porões da ditadura brasileira (1964-1985). Miguel, que sempre manteve um tenso silêncio sobre o episódio em casa, desmanchou-se na frente de um de seus dois filhos. "Nunca tinha visto ele chorar pela lembrança do irmão. Foi uma vida inteira engolindo a dor, o que marcou muito a personalidade dele e a família toda", relata o caçula de 28 anos, Felipe Nin. Naquele dia Miguel deixou escapar: "finalmente estou enterrando meu irmão da forma correta".
A forma correta queria dizer com a verdade marcada no papel, porque a família nunca acreditou que o engenheiro de 27 anos, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, havia morrido de infarto, como os militares disseram na época. Foi com a força da incredulidade que Mariana Lanari, mãe de Raul, abriu o caminho para a descoberta da verdadeira versão dos fatos. "O papel que ela teve foi muito importante porque ela lutou sozinha e conseguiu, ainda na ditadura, desfazer a mentira oficial provando que meu tio foi torturado e assassinado", conta Felipe. Motivada pelo fervor católico e pela determinação da família de Vladimir Herzog em mudar a versão oficial da morte do jornalista, a avô de Felipe tornou-se uma das primeiras pessoas no Brasil em reclamar com sucesso a responsabilidade da União na morte do filho. A vitória só chegou em 1994. Mas uma década depois Mariana morreu e com ela se foram os encontros da ampla família e a história até então conhecida de Raul, edulcorada pelo amor de mãe e pelas lembranças diluídas pelo tempo.
Tiveram que se passar mais 20 anos para que os detalhes da descoberta de Mariana fossem reconstruídos a partir de dezenas de documentos oficiais. Não foi a Comissão Nacional da Verdade ou os irmãos de Raul os que teceram (quase) toda a história, mas os sobrinhos mais novos, um jovem advogado e um arquiteto, os filhos do pai que chorou pela primeira vez. "Nós tivemos sorte porque recebemos toda a documentação digitalizada, mas existem milhares de documentos jogados no chão úmido de depósitos", lembra Felipe.
A pesquisa documental, iniciada em julho de 2012, acabou um ano e seis meses depois com um relatório de 300 páginas que foi apresentado à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e motivou um novo laudo médico sobre a morte de Raul Amaro onde se defendeu a relação da morte com prolongadas sessões de torturas sofridas durante o encarceramento. "Ele já não tinha mais condições de andar e estava enrolado em uma manta. Aquilo me marcou muito porque foi a primeira vez que vi alguém agonizando", testemunhou em 1981 o ex-soldado Marco Aurélio Magalhães, presente nos interrogatórios de Raul, antes de o militante ser transferido para o hospital.
O relatório dos irmãos abre também a possibilidade de que Raul Amaro tenha sido torturado no próprio hospital militar com a conivência da equipe médica. O caso é considerado muito relevante na reconstrução dos anos de chumbo do Brasil porque abriu as portas para a investigação de várias outras mortes no HCE. Os próprios sobrinhos ficaram surpresos em descobrir como aquele episódio havia sido documentado. "Há mais de 50 páginas relatando o período que ele ficou preso, é uma quantidade muito grande de informação", avalia Felipe. O mergulho em toda aquela documentação oficial permitiu reconstruir detalhes cruéis como a ordem de um coronel para adicionar nos autos que o pai de Raul tinha delatado o próprio filho. "Encontramos até o bilhete em que ele pedia para modificar o relatório para incluir o papel delator do nosso avô. Foi tudo uma montagem", afirma Felipe.
A mãe de Raul nunca mencionava o envolvimento político do filho na luta contra o regime. Ao que parece, ela nunca o assumiu. Mas as entrevistas dos sobrinhos com o círculo próximo do tio revelaram que o engenheiro se debatia entre manter sua condição confortável de funcionário no Ministério da Indústria e Comércio ou entrar de cabeça no movimento guerrilheiro revolucionário. "Raul era um ponto de interrogação sobre duas pernas", relatou a ex-namorada Vera Marina aos jovens. A pesar da indecisão que o caracterizava, dessa vez Raul não teve a opção de decidir e nenhum dos parentes sabia, nem quis saber, o que de verdade aconteceu.
"Lidar com a parte afetiva desta história foi o mais difícil. A pesquisa me aproximou e me reconectou com a família. Nunca antes tivemos a noção do que representava esta história, o que significava esta busca para as pessoas. Às vezes, pequenas coisas para nós eram enormes para o resto", conta Felipe ao lembrar do desconforto que a ex-namorada do seu tio sentiu ao ser convidada para ir a uma pizzaria na mesma rua onde Raul vivia.
Preso em primeiro de agosto de 1971 durante uma blitz do Exército quando voltava de uma festa "com atitude suspeita", conforme uma das quatro versões dos relatórios da prisão, Raul ficou mais 11 dias nas mãos dos militares antes de morrer. Até o dia de hoje e apesar de que sua mãe ter conseguido que a União reconhecesse seu papel nas torturas infligidas ao filho, a certidão de óbito de Raul Amaro ainda mantém em branco a causa de sua morte.
"É algo a ser conquistado, mas não tem sido nosso objetivo", ressalta Felipe, ocupado com questões mais prioritárias para ele. "O mais importante para nós é a construção do nunca mais. A transformação dos locais de repressão e tortura em locais de memória cumpre um papel muito mais importante do que prender os algozes do meu tio".
O antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), mais um lugar em decadência no centro do Rio, é o local escolhido para ilustrar esta reportagem. Aqui foi onde Raul Amaro passou os primeiros dias do seu cativeiro antes de ser enviado ao hospital agonizando, e onde outros muitos cariocas, como o taxista que nos levou até lá, viram pela ultima vez seus familiares. Hoje o principal objetivo do sobrinho Felipe, vestido com uma camiseta estampada com a fachada do edifício, é ganhar a batalha que seu tio não conseguiu: contrariar a vontade dos agentes. A luta é evitar que a polícia construa ali um museu da corporação. Eles querem que o local seja transformado em uma espécie de homenagem arquitetônica a Raul Amaro e às mais de 400 vítimas que não se curvaram diante o sistema.
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