_
_
_
_
_

‘Free the Nipple’: o exército do topless chega ao cinema

Conversamos sobre feminismo, dupla moral e censura com a diretora Lina Esco

Cortesia de Bérénice Eveno (Disruptive Filmes)

“Não temos nada a ver com o Femen” Lina Esco avisa por telefone de Los Angeles que o movimento #Freethenipple, a hashtag que mais incomodou o Facebook e o Instagram neste ano, está há anos-luz das outras ativistas feministas que também tiram a roupa em seus protestos pela Europa. Seu movimento, diz, é mais integrador e menos radical. Esco é a ideóloga, diretora, roteirista e uma das atrizes principais do filme Free the Nipple, que estreia em 12 de dezembro nos EUA e que chega depois que seu lema e sua luta para descriminalizar o corpo feminino foram amplificados por estrelas como Miley Cyrus, Scout Willis, Cara Delevingne e Lena Dunham. Supunha-se que o filme chegaria primeiro, e depois o movimento, mas tendo em vista que ninguém queria distribuir um filme em que um exército de ativistas protesta de topless em Nova York, Esco entrou em ação com um blog muito completo sobre feminismo e censura no The Huffington Post e com um exército de amigas (famosas) dispostas a conseguir que a #Freethenipple se tornasse algo mais do que fotos sobre liberar os mamilos. A vida, em uma guinada, quis que o movimento que explora no filme –q ue tem como protagonista Lola Kirke, irmã de Jemima Kirke (Jessa em Girls) – fosse visto muito antes da estreia. Puritanismo, dupla moral, violência, censura, igualdade e feminismo são as palavras que ela mais repete na conversa.

Mais informações
A era das feministas pop
Sonhos e pesadelos de dez jovens chinesas
A foto satânica de Aliaa Elmahdi
Keira Knightley luta contra o Photoshop
Emma Watson se une à causa das feministas uruguaias
O topless não interessa ao Rio de Janeiro

Quando decidiu que queria escrever e dirigir este filme?

Foi em 2010. Estava rodando um filme (LOL, onde dividia a tela com Miley Cyrus) em que os atores e a equipe falavam muito sobre as desigualdades entre homens e mulheres. Comecei a pesquisar sobre ativismo feminino e cheguei até Susan B. Anthony e como, graças a ela, as mulheres puderam votar nos EUA em 1920. Foi quando uma de minhas melhores amigas, uma das pessoas que mais admiro e a mais livre que conheço, disse que a mãe dela havia sido expulsa da igreja porque estava dando o peito a ela, que tinha cinco meses. Naquela época eu estava naquele filme com Miley, e disse à diretora, Lisa Azuelos, que tinha uma ideia para rodar um filme sobre garotas que saíam de topless para lutar por maior igualdade na América. Ela me disse que queria ver o roteiro assim que eu o terminasse e que me financiaria o filme. Pensei que ela estava brincando e em 2012 terminei o roteiro. Lisa financiou a gravação contribuindo com um milhão de dólares e terminamos a rodagem no fim daquele ano. Passei parte de 2013 procurando bons editores, chamei três porque não encontrava o corte que eu queria. Consegui resolver isso e depois enfrentei os problemas de distribuição. Em dezembro de 2013 comecei a escrever um blog sobre o meu filme e a censura no Huffington Post e Miley começou a falar do filme no Instagram e nas redes sociais. Se você pensar, foram quatro anos de trabalho, porque só em julho deste ano conseguimos que nossa distribuidora fosse a IFC (a mesma de Boyhood – Da Infância à Juventude e Azul É a Cor Mais Quente).

Para os recém-chegados, do que trata 'Free the Nipple'?

É sobre uma garota de Nova York, uma ativista que busca a igualdade lutando contra a censura aparecendo de topless pela cidade. Acredito que deveria ficar claro que a história não é sobre o topless, é sobre igualdade. Se tivéssemos feito um filme que se chamasse Igualdade e não aparecessem garotas de topless, ninguém estaria falando dele. Ninguém. O mamilo se tornou o cavalo de Troia que revela os verdadeiros problemas e a desigualdade que há na América.

Você teve problemas para rodar as cenas das garotas sem camiseta pela cidade?

Muitíssimos. Embora o topless seja legal em Nova York, a polícia nos disse que não podíamos fazê-lo enquanto gravávamos porque iria parecer que estávamos rodando um filme pornô. Assim, tive de roubar a maioria das cenas sem que a polícia ficasse sabendo. Rodávamos em uma tomada só e muito rápido. Foi bem louco. Teria sido impossível rodar todas essas cenas se tivesse tido que esperar a autorização da cidade.

A trama do filme mostra o duplo padrão cultural entre o nu e a violência. Por que você acredita que a cultura americana se sente ultrajada com um nu, mas dá tantas facilidades para acessar e distribuir imagens violentas?

É um tema que tratamos muito no filme, como permitimos muitíssima violência em nossos meios de comunicação e como a MPAA (Motion Pictures Association of America, que decide a faixa etária adequada dos filmes) permite que essa violência seja distribuída sem problemas. Não há equilíbrio. Há muitíssima violência e armas nos cinemas, mas um mamilo ou uma mulher simulando um orgasmo é considerado pornográfico. Acredito que na América há muitíssimo dinheiro destinado a ocultar o mamilo. E quando digo que se oculta o mamilo, refiro-me a que se sexualiza e se coisifica o corpo da mulher. Uma mulher não é proprietária do seu corpo no cinema. Então, se você diz “não me moldo às suas regras e quero mostrar tudo”, você estará fazendo algo mau. Note que, no Facebook, o nosso logotipo, que é um desenho de uma garota de topless, é ilegal! Não existe um equilíbrio com o corpo feminino e fico feliz de haver exposto todos esses problemas no filme.

Partindo do topless?

Lola Kirke e outras ativistas em uma cena do filme.
Lola Kirke e outras ativistas em uma cena do filme.Cortesia de Bérénice Eveno (Copyright Disruptive Filmes)

Sim, porque aí se demonstra a hipocrisia da MPAA, a hipocrisia da América e a opressão que se exerce sobre as mulheres. Veja quantas normas temos sobre nossos corpos. E, entretanto, não há normas sobre o corpo masculino. Nos anos 30, centenas de homens foram presos por fazerem topless nas praias de Nova York e foi apenas em 1936, em Coney Island, que os homens que queriam fazer topless e tomar banho sede mar mostrando o abdômen puderam fazê-lo graças à sentença de um juiz. Se os homens têm esse direito, as mulheres também deveriam tê-lo. Assim, se não nos vão tratar igual, vou ter de falar disso. Como Rosa Parks quando se negou a sentar na parte traseira do ônibus, junto às pessoas de cor, e disse que ela também podia sentar na frente com os brancos.

As mulheres, na América, recebem 78 centavos por cada dólar que recebe um homem no mesmo posto de trabalho. No fundo é uma questão bastante simples, apoiada em uma mercantilização do corpo. Há muito dinheiro que trata de esconder o mamilo: se permitissem o topless, chegaria um ponto em que as pessoas se cansariam de vê-lo, deixaria de ser um tabu e aí perderia todo esse valor sexual de coisificação feminina que há na indústria. Por isso o mamilo é um símbolo que a América necessita. Ver um montão de tetas por todo lado para que superem esta merda de uma vez. Não é só fazer topless para conseguir igualdade em relação aos corpos, há muito mais por trás.

Nos EUA, dependendo do estado onde você estiver, pode estar sujeita a multas de até 2.500 dólares e três anos de prisão por mostrar um mamilo. Você já contatou muitas mulheres que tiveram de enfrentar essa situação?

Sim, naturalmente. Em Nova York o topless é permitido desde 1992 mas, por exemplo, Phoenix Feeley foi presa por negar-se a pagar as multas por tomar o sol sem a parte superior do biquíni em Spring Lake (Nova Jersey). Passou nove dias na cadeia e protestou com uma greve de fome. É realmente ridículo ver a que situações podemos chegar.

Antes você estava falando da censura da MPAA e seus critérios de qualificação. O que aconteceu com seu filme?

A MPAA é o tipo de gente que decide em nosso país que tipo de arte se pode ver e qual não é acessível a certos estratos da população. Não fala com ninguém, nem dá explicações. E você nunca consegue se reunir com eles, aí está a raiz do problema. Explicam isso maravilhosamente bem no documentário Os Censores de Hollywood. Quando definem a classificação, não há uma vírgula justificando sua decisão. Em Free the Nipple decidimos que o filme não passaria pela MPAA e, consequentemente, chegaria aos cinemas sem classificação.

E essa decisão não vai pôr entraves à exibição do filme? Poderá ser visto em muitos cinemas no dia 12 de dezembro ou será uma estreia mais limitada?

Primeiro estreará em Nova York e Los Angeles e depois veremos como andam as coisas. Estamos tentando distribuir na Inglaterra, Hong Kong, Turquia e em outros países.

Não só puseram entraves à exibição, como as contas de Free the Nipple no Instagram e no Facebook foram censuradas e proibidas.

Essas normas em redes sociais não vão mudar e continuarão hipócritas do mesmo jeito. No Instagram você tem acesso a um monte de contas sobre armas ou atrizes pornôs promovendo-se. Lá tem aquelas imagens totalmente pornográficas, em que só cobrem parcialmente as aréolas do mamilo ou o sexo. Pensam que com isso está resolvido, mas a essência pornográfica está ali. Isso é permitido, mas nossas imagens de protesto não, e ninguém faz nada a respeito. Não lhes importa. Nós protestamos várias vezes e perdemos todas. É triste ver que isso não muda.

A diretora e Rumer Willis, em uma festa para arrecadar fundos para o filme, em junho.
A diretora e Rumer Willis, em uma festa para arrecadar fundos para o filme, em junho.GETTY

Crie que ter dirigido este filme pode atrapalhar sua carreira como atriz?

Meu agente por exemplo, não me apoiou e me abandonou quando lhe disse que ia dirigir e coprotagonizar o filme. Quando acontecem coisas assim é preciso ser forte e revidar. Agora tenho outro agente. Tive de lidar com muitas outras coisas por causa do filme. Há gente que não entende. O título do filme, por exemplo, só quer ser divertido. É um título meio tolo se pensar bem: libere o mamilo. Mas é que essa é a vontade do filme, partir de algo tão tolo como ocultar um mamilo para ir a algo maior. Não fiz um drama, é um filme divertido. Não foi feito com raiva ou frustração ou a angústia que muita gente parece imaginar. Foi feito com amor, com paixão e com vontade de divertir. Simplesmente queremos acabar com a mentalidade puritana deste país, que é profundamente ridícula.

O filme só estreia no dia 12, mas deve ter sido emocionante ver como evoluiu todo o movimento em torno do Free the Nipple quase um ano antes de sua estreia. Imaginou alguma vez que seu filme poderia converter-se no movimento ativista que é hoje?

Sabia que o filme ia despertar algum tipo de debate, mas não da forma como evoluiu. Ironicamente, o filme devia estrear primeiro e o movimento deveria ter chegado depois, de forma orgânica. Mas tivemos muitíssimos problemas para que o filme pudesse estrear. Pode ser pelo título, por todo o tema da censura e porque, no fundo, não é o filme típico que se vê no cinema. Estávamos tendo muita dificuldade para saber se seria distribuído, por isso, em dezembro de 2013, decidimos começar o movimento enquanto tentávamos fazer o filme chegar às telas. Começamos a fazer campanha com celebridades, artigos na imprensa e influencers. Daí tudo passou para Instagram e se tornou cada vez maior e mais profundo.

Você teve muitíssimo apoio de celebridades. Lena Dunham, Miley Cyrus, Scout Willis e Liv Tyler expressaram publicamente seu apoio ao Free the Nipple. Como avalia isso?

É muito irônico porque no filme há uma cena em que discutimos sobre conseguir ou não o apoio de influencers e famosos para que o movimento ganhe peso, mas na realidade não planejamos que fosse assim. Acredito que ter famosos falando sobre isso tornou o tema ainda mais polêmico e não sabia o que ia acontecer. Não sabia que Miley, Lena Dunham e Chelsea Handler foram falar do Free the Nipple, e além disso expondo que era muito mais que a liberação do topless, que era sobre igualdade.

Miley Cyrus participa no filme de alguma maneira?

Sim. Ela se encarrega da canção dos créditos finais. Fez uma versão de minha canção favorita: Look What They've Done to My Song, Ma de Melanie Safka. Miley é uma boa amiga e adorou colaborar. A banda sonora do filme está a cargo do Nick Littlemore, do Empire of the Sun, e ela veio ao estúdio e os dois se entenderam perfeitamente.

Para cada Miley Cyrus ou Emma Watson que aparece na mídia mostrando seu apoio ao movimento feminista, ultimamente encontramos estrelas distanciando-se do termo, mas alegando que procuram a igualdade entre homem e mulheres. Por que acredita que existe uma alergia a essa palavra?

Eu adorei ver o discurso de Emma Watson na ONU, foi uma maravilha ver como se pode educar na igualdade. As pessoas deveriam entender que o feminismo, hoje em dia, defende que homens e mulheres sejam tratados em igualdade de condições. É só isso. Mas também entendo toda essa gente que tem alergia à palavra feminista, mas acredita na igualdade de direitos. Pensam no passado, em um momento dos anos 60, quando sim havia razões para estarem zangadas e lutar ferozmente pelos direitos. Sem aquelas mulheres, sem sua luta, hoje seria tudo muito diferente e provavelmente teríamos razões para ser igualmente radicais. Mas hoje em dia estamos renomeando o feminismo, e é uma etapa que inclui a todos: mulheres e homens. Não devemos excluí-los. Eu não tenho nada contra eles, estou rodeada de homens maravilhosos em minha vida e jamais os odiaria por serem homens. Devemos ter em mente que a igualdade é uma grande meta a alcançar e que ainda não é uma realidade. A maneira que encontrei para buscá-la é por meio do topless, porque, sendo realista, acredito que sem o topless não teria conseguido toda a atenção que estou tendo.

Free the Nipple estreia nos EUA em 12 de dezembro. As imagens e o trailer deste artigo têm os seios pixelados por vontade da produtora do filme.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_