A maldição de se tornar Miss na América Latina
O assassinato da Miss Honduras comprova a relação tóxica das rainhas da beleza com a violência estrutural de seus países
Em Honduras, assim como em outros países da região, os concursos de beleza são um esporte nacional. Há todas as categorias imagináveis e não há povoado, organização, grêmio, sindicato ou baile de carnaval que se preze que não tenha seu próprio concurso. Mulheres sem grandes oportunidades se inscrevem nos certames para tentar um futuro melhor. E foi esse o caso de María José Álvarez Alvarado, Miss Honduras 2014, estudante de classe média baixa cuja vida se viu ceifada com o advento da fama.
Dois tiros puseram fim à carreira dessa “rainha da beleza”, de 19 anos. Foi encontrada enterrada ao lado de sua irmã Sofía em um estábulo a 200 quilômetros da capital, Tegucigalpa. A jovem não poderá assistir à 64a edição do Miss Mundo, que acontece no próximo dia 14 de dezembro em Londres. O trágico desfecho colocou um ponto final em uma história que se repete como uma maldição entre as Rainhas da América Latina.
Álvarez é a terceira Miss assassinada em 2014, depois do homicídio durante um assalto de Mónica Spear (Miss Venezuela 2014) e da também venezuelana Génesis Carmona (Miss Turismo Carabobo, 2013), morta depois de receber um tiro durante protestos contra o governo.
Mesmo tratando-se de casos isolados, o número de Rainhas assassinadas na última década pode ser interpretado como uma perigosa tendência. Adam Blackwell, secretário de assuntos de segurança da Organização dos Estados Americanos, afirma que no continente mais perigoso do mundo ser uma “celebridade” transformou as Misses em alvo “de roubo, ciúmes e extorsão”. Carregar a coroa se tornou uma profissão de alto risco.
O primeiro caso (e talvez o mais emblemático) que atingiu o mundo da beleza foi o assassinato da belíssima ativista de esquerda guatemalteca Rogelia Cruz, que em 1958 recebeu a coroa de Miss Guatemala e militava em uma das primeiras organizações guerrilheiras do país, as Forças Armadas Rebeldes (FAR). Cruz, que no ano seguinte participou do concurso de Miss Universo, foi sequestrada, estuprada e assassinada dez anos depois por um comando paramilitar. Depois de seu assassinato tornou-se mártir dos direitos sociais na Guatemala e recentemente um documentário sobre ela estreou nos cinemas.
‘Narcomulheres’
O fenômeno que mais castigou as Misses é o das ‘narcomulheres’. Desde o lendário capo do cartel de Cali, Miguel Rodríguez Orejuela, que se casou com Marta Lucía Echeverry, Miss Colombia 1974, as Rainhas se tornaram autênticos troféus para os traficantes.
Foi o caso da atriz colombiana da famosa telenovela Pasión de Gavilanes, Liliana Lozano. Lozano (Miss Carnaval de Colômbia 1995) apareceu anos depois brutalmente torturada junto ao irmão de seu marido, o traficante de cocaína Leónidas Vargas.
E como se fosse parte do filme mexicano Miss Bala (2011), na qual uma candidata ao concurso de beleza da Baixa Califórnia acaba envolvida em uma espiral de drogas e violência, a Miss Sinaloa 2012, ‘Suzy’ Flores morreu em 2013 durante um tiroteio entre soldados e assassinos de aluguel que foi relacionado a seu namorado, o perigoso matador do cartel de Sinaloa Orso Iván Gastelum, também chamado de “El Cholo”.
Mas há muitos mais: Karen Virginia Blanco (Miss Turismo Venezuela, 2007) foi assassinada com seu namorado em 2011; Karla Contreras (Rainha da Faculdade de Contabilidade e Administração de Sinaloa, México) foi baleada aos 19 anos quando viajava em um Cadillac de luxo em 2013...
Todos esses crimes tiveram um grande repercussão social e midiática e indicam que em um continente em que a beleza tem tanta importância, as Rainhas acabam rodeadas das pessoas mais poderosas e, com frequência, mais perigosas. É o preço a pagar para levar a coroa.
Fascinados pela beleza (e a fama) de seus mortos
A morte da Miss Honduras “acontece em um contexto de violência e impunidade que colocou Honduras como um dos países mais violentos do mundo”, explica Glenda Perdomo, editora de notícias do jornal hondurenho La Prensa. No entanto, “o assassinato da Miss Honduras repercutiu tanto exatamente por que se trata de uma Rainha da beleza”, lamenta. A única diferença em relação ao resto das vítimas da violência é que a coroa acompanha as Rainhas até o túmulo.
A reação dos hondurenhos, que despertam toda manhã com uma média de 15 cadáveres dos jornais, foi enorme para um fato tão corriqueiro. As hashtags do Twitter #HondurasDeLuto e #MissHondurasMundo2014 são trend topics, frequentemente junto ao sinistro #RIP. A página do Facebook da Miss se encheu de condolências de pessoas anônimas que escrevem de Santa Cruz de la Sierra, berço das Rainhas da Bolívia, até o Equador. A última fotografia, postada quando Alvarado faleceu, acumulou mais de 8.000 likes em dois dias.
A empatia despertada por essas Misses tem a ver “com um culto excessivo ao corpo que faz as pessoas pensarem que, por serem belas, a vida será melhor”, diz a psicóloga barcelonesa e professora da UNED Mati Segura. Do “vínculo” que as pessoas estabelecem com as Misses nasce a profunda tristeza que demonstram com sua morte. De alguma forma, as Rainhas fazem parte de suas vidas desde que são coroadas.
Paradoxalmente, o sonho realizado dessas jovens não lhes permitiu afastar o clima de violência em que se vive em muitos países da América Latina, um continente que, apesar de encadear uma década de crescimento econômico, foi incapaz de reduzir de forma substancial os índices de desigualdade e insegurança. Elas são, simplesmente, as caras visíveis de um fenômeno que não distingue a beleza.
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