16.000 pacotes repletos de segredos
Um engenheiro tenta reconstruir os milhões de documentos do gigantesco arquivo da Stasi
Em 1989, quando, após a queda do muro de Berlim, o fim do regime comunista que imperou durante 40 anos na agora extinta Alemanha Oriental parecia iminente, os agentes da Stasi cumpriram sua última missão em defesa do socialismo. De maneira frenética, começaram a destruir os documentos mais comprometedores que estavam armazenados no quartel-general do órgão de inteligência dirigido por Erich Mielke, o famoso e temido “mestre do medo”.
O agitado trabalho de destruição, inicialmente feito mecanicamente e depois, quando as máquinas esgotaram suas capacidades, à mão, acabou subitamente em 15 de janeiro de 1990. Naquele dia, uma multidão armada com a raiva acumulada em quatro décadas invadiu o sinistro edifício e descobriu milhares de pacotes cheios de documentos rasgados que tinham sido elaborados pelo exército de espiões de Mielke. A Stasi tinha uma mania doentia de saber o que pensava e o que fazia o povo da Alemanha Oriental. Em seu melhor momento, a entidade contou com 90.000 agentes e cerca de 170.000 informantes. Tudo o que eles escutavam ou viam ia parar em seu gigantesco arquivo. As atas que sobreviveram à destruição ocupam cerca de 111 quilômetros.
A descoberta de quase 16.000 pacotes cheios de pedacinhos de papel deixou os invasores desconcertados e intrigou as autoridades, que preferiram guardar o tesouro e começaram a estudar a possibilidade de reconstruir o enorme quebra-cabeças herdado da Stasi. A monumental tarefa recaiu sobre um grupo de arquivistas que, dotados de uma paciência infinita, iniciaram o desafio em 1995 em um edifício oficial localizado em Zirndorf, um pequeno povoado da Bavária. Eles tinham diante de si um trabalho descomunal. No melhor dos casos, eles levariam 700 anos para restituir os mais de 600 milhões de pedaços de papel.
Nickolay passou os últimos sete anos examinando milhares de pedaços de papel, mas pediu ajuda para agilizar o trabalho
O engenheiro Bertram Nickolay, que dirige o Departamento de Técnicas de Segurança do famoso Instituto Fraunhofer, em Berlim, tinha 45 anos em 1999, quando assistiu a uma reportagem na televisão sobre o trabalho daquele grupo de artesãos. Impressionado com as imagens, o engenheiro se viu às voltas com uma ideia: “Pensei que montar aquele quebra-cabeças gigante poderia ser um grande desafio para o meu departamento e também para lançar um pouco de luz sobre o misterioso trabalho da Stasi”, afirma. Em 2002, Bertram Nickolay apresentou ao Governo um software batizado de ePuzzler e garantiu que, graças às novas tecnologias, ele poderia recuperar o conteúdo dos 16.000 pacotes em um prazo de 10 a 12 anos.
O Governo levou cinco anos para dar uma resposta. Em 2007, a Comissão de Orçamento do Bundestag aprovou um financiamento de 6,3 milhões de euros (quase 19 milhões de reais), aos que se somaram outros dois milhões de euros (seis milhões de reais) em 2012, para desenvolver um projeto piloto que começaria com a digitalização do conteúdo de 400 pacotes em um prazo de cinco anos. Mas o engenheiro e sua equipe logo perceberam que o scanner, que tem a missão de memorizar o tamanho, a cor, a letra, a espessura do papel e o contorno dos pedacinhos, e enviar tudo ao computador, trabalhava muito lentamente.
“O software funciona”, afirma o engenheiro, que, apesar disso, reconhece que o trabalho acabou sendo bastante difícil. “Nesse tempo conseguimos escanear o conteúdo de 24 pacotes e processar o que estava em 12 deles. O trabalho de digitalização é muito lento. Por isso desenvolvemos uma rua digital, dotada de módulos que limpam os pedacinhos de papel e de pequenos robôs que os classificam, para acelerar o trabalho”, diz.
“Mas para implementá-la precisamos de um financiamento extra de cerca de seis milhões de euros (18 milhões de reais)”, acrescenta, sem conseguir ocultar o receio de que seu trabalho possa não ter continuidade. A incerteza que reina no departamento dirigido por Nickolay no Instituto Fraunhofer é enorme e aumentou quando a equipe leu, há duas semanas, uma longa reportagem no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung na qual a autora afirmava, sem dar detalhes, que o Governo federal tinha perdido o interesse em desencavar o mistério contido nos sacos herdados. A hipotética decisão foi qualificada por Bertram Nickolay como uma “vergonha internacional” que exporia ao ridículo o Governo e o Bundestag. Acabar com o projeto piloto, além de pôr fim a uma ideia brilhante e bem-sucedida, deixaria em mãos dos artesãos de Zirndorf a tarefa de continuar unindo pacientemente os pedacinhos, um trabalho que já revelou alguns segredos. Nos últimos 19 anos, os arquivistas conseguiram reconstituir 1,3 milhão de páginas que correspondem ao conteúdo de 400 sacos.
Os artesãos, por exemplo, montaram aproximadamente 10.000 documentos elaborados em sua maioria pela Seção Principal XX, que tinha a missão de combater a oposição política na Alemanha Oriental, e por outros departamentos, como o responsável pela espionagem no exterior. Os quebra-cabeças recompostos revelaram, por exemplo, as vidas paralelas do teólogo Heinrich Fink, que renunciou ao cargo de reitor da Universidade Humboldt, de Berlim, em 1992, depois de se descobrir que ele era informante da Stasi, e do bispo da igreja evangélica da Turíngia, Ingo Bräcklein, que também deixou o posto.
A Comissão de Orçamento do Bundestag voltará a se reunir em 15 de setembro. Enquanto isso, o porta-voz do Ministério da Cultura, Hagen Philip Wolf, garante que a decisão final depende de “esclarecer certos aspectos internos”. Pela lei, todos os habitantes espionados têm o direito de ver seus registros. Esse processo provocou tragédias familiares porque em algumas ocasiões se descobriu que a mulher espionava o marido, ou vice-versa. O interesse em ver os registros diminuiu e existe a possibilidade de que o órgão encarregado desse passado obscuro seja dissolvido em 2020.
O software criado por Bertram Nickolay e sua equipe é único no mundo e também pode servir para a inscrição de um novo capítulo na ciência que estuda o passado: a arqueologia digital. O ePuzzler é capaz de tornar visíveis documentos que foram quase apagados pelo tempo, como dezenas de milhares de fragmentos de papiros guardados nos porões do Museu Egípcio de Berlim.
O trabalho do engenheiro também chamou a atenção no Chile. O Vicariato da Solidariedade, ligado à Igreja, que ainda tem em seu poder documentos destruídos pela ditadura, pediu a ajuda de Nickolay para reconstituir essa documentação, a qual poderia esclarecer o que ocorreu com centenas de desaparecidos. “Encaminhei um convite à presidenta Michele Bachelet para que visite nosso instituto”, disse o engenheiro. “Ela fará uma visita de Estado à Alemanha no final de outubro.”
Bertram Nickolay tem também interesse pessoal em continuar com o trabalho destinado à reconstituição dos documentos da Stasi. Seu amigo Jürgen Fuchs, um famoso escritor dissidente da Alemanha Oriental, tinha 48 anos quando morreu em 1998 vítima de um câncer no sangue provocado, segundo suspeita, por um banho radioativo que ele recebeu nas masmorras do serviço secreto. “Se puder demonstrar que Jürgen morreu por causa desse banho letal, eu terei feito justiça a meu amigo e a todas as vítimas anônimas desse sistema repressivo”, diz.
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