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ESTELA DE CARLOTTO | PRESIDENTA DAS AVÓS DA PRAÇA DE MAIO

“A Justiça decidirá sobre as pessoas que criaram meu neto”

“Eram pessoas sem cultura, não os condeno. Mas também há um fundamento: eles o criaram bem, com amor”, afirma a ativista

Vídeo: RICARDO CEPPI
Francisco Peregil

Laura Carlotto teria agora 60 anos se não tivesse sido assassinada com 24 em plena ditadura argentina (1976-1983). Permitiram que estivesse com seu bebê por apenas cinco horas. Depois ele lhe foi tirado e ela foi morta. Sua mãe, Estela de Carlotto, começou a percorrer a Praça de Maio junto a centenas de avós, exigindo de volta os bebês roubados durante a ditadura. Enquanto isso, o bebê de Laura Carlotto cresceu em um município da província de Buenos Aires acreditando que era filho biológico de um casal de trabalhadores rurais, Juana e Clemente Hurban.

Em 6 de agosto confirmou-se que um músico de Buenos Aires, de 36 anos, que até então tinha vivido como Ignacio Hurban, na verdade era neto da presidenta das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto. Ele tinha ido voluntariamente fazer os testes. E descobriu ser filho de Oscar Puño Montoya e Laura Carlotto, membros da organização clandestina Montoneros. A revelação – o 114º neto recuperado em quase 40 anos – funcionou como a melhor campanha publicitária que se poderia imaginar. Desde então, não param de chegar pessoas de 30 anos à sede portenha das Avós para pedir exames de DNA. Ainda restam cerca de 400 bebês roubados de presas políticas assassinadas a serem “recuperados”.

Estela de Carlotto continuará à frente dessa luta. E se diz mais forte do que nunca. A entrevista foi realizada na sexta-feira à tarde, depois de uma reunião com outras avós e com Nicolás Gil Lavedra, o diretor do filme Verdades verdaderas, la vida de Estela (2011).

Quanto mais suavemente se fala, mais a pessoa ouve. Se você levanta a voz, a pessoa fica abalada”.

De Carlotto (Buenos Aires, 1930) demonstra o mesmo tom imparcial que caracteriza sua presidência nas Avós. “É difícil eu gritar ou ter um gesto de violência de jogar uma coisa na parede. Jamais toquei em um fio de cabelo de meus filhos. E como professora falava muito de leve com as crianças. Porque quanto mais suavemente se fala, mais a pessoa ouve. Se você levanta a voz, a pessoa fica abalada”.

Ela fala da cumplicidade que havia entre seu marido, Guido Carlotto, e sua filha Laura. E se lembra que ela tinha uma personalidade muito forte. “Era meio protetora dos irmãozinhos menores e arrumou um namorado aos 13 anos. Ela me disse: ‘Mamãe, estou apaixonada por um menino’. ‘E quantos anos ele tem?’ Ele tinha 18. ‘Não, querida, é um homem’. Ela então me disse: ‘Bem, mamãe. Tem dois jeitos: ou eu minto ou você me aceita’. E eu aceitei. Foi um namoro longo, mas ela não se casou com ele. Dois anos depois, tomando um cafezinho em um bar de La Plata, disse a ela: ‘Laurita, você precisa ir embora que estão matando as pessoas’. E ela me disse: ‘Ninguém quer morrer. Mas nós vamos morrer e nossa morte não vai ser em vão”.

Depois da morte de Laura, nunca houve troca de recriminações entre ela e Guido Carlotto. E também não foram ao psicólogo. “Nunca fui a um psicólogo. Meu marido foi, mas por causa da crise dos quarenta. Minha personalidade é a de resolver as coisas sozinha. E tenho uma gana: ou resolvo ou resolvo. Às vezes não acontece, e então me rendo. Mas também procuro uma explicação”.

Pergunta. Depois da euforia do reencontro entre avós e netos, costuma vir uma etapa difícil?

Resposta. Depende da situação. Quando os filhos vêm voluntariamente nos procurar porque têm dúvidas, é fácil. Mas há casos em que recebemos informações, temos uma equipe que vai e visita a pessoa, que é adulta, e costuma haver uma reação negativa [a reconhecer a avó]. Então vamos à Justiça. O juiz decide o encontro. Eu sempre me lembro de uma avó que estava acompanhando. A avó estava muda, porque dissemos a ela: “Não o abrace, não fale, espere, não force a situação”. E a primeira coisa que o menino disse foi: “Senhora, não me peça que a ame, porque eu não a amo”. E ela respondeu: “Veja, eu amo você. E vou esperá-lo”. E algumas avós esperaram dez anos. Mas quando há uma decisão e um encontro com uma família, tudo é diferente.

P. A senhora continua chamando-o de Guido – apesar de ele ter dito publicamente que prefere o nome de Ignacio.

R. Eu disse a ele no primeiro dia: “Colocaram em você o nome de Ignacio. Mas eu te aviso que vou chamá-lo de Guido. Sabe por quê? Porque eu, por 37 anos, procurei você como Guido. E, além disso, sua mãe, da prisão, quando você estava na barriga dela, mandou nos dizer por meio de uma prisioneira libertada que ela estava grávida de seis meses, que seu bebê ia nascer em junho e que eu, sua mãe, deveria ir buscá-lo na maternidade de La Plata; e que, se fosse um homem, que se chamasse Guido, como o avô. Para mim, você é Guido. Mas eu respeito sua decisão”. E na quinta à noite, ele me disse que vai se chamar Ignacio Guido.

P. A senhora está ganhando terreno, porque ele dizia que preferia continuar se chamando Ignacio Hurban.

R. Ele me disse: “Vou me chamar Ignacio Guido. Gosto de Ignacio, por isso vou manter. Mas Guido também. Ignacio Guido Montoya Carlotto”. “Tudo isso”, disse, “assim graaande eu vou ser”. Porque o nome falso dele é curto [Ignacio Hurban]. Mas ele já sabe que a Justiça tem de mudar seu nome, mudar os nomes de seus títulos, de suas propriedades, se tiver, dos documentos... E ele vai ter de tirar o passaporte, porque estão convidando-o para ir a um montão de lugares do mundo.

Eu tinha medo de pensar em onde estaria morando, com quem, como seria tratado e que efeito os maus-tratos, se tivessem havido, teriam sobre ele".

P. A senhora imaginou seu neto assim?

R. Eu tinha medo de pensar onde estaria morando, com quem, como seria tratado e que efeito os maus-tratos, se tivessem havido, teriam sobre ele. Podia acontecer de ser um delinquente. Até agora não aconteceu... Ou que se drogasse, como tantos jovens, ou que não estivesse vivo. Mas sempre o concebi assim como é, igualzinho.

P. No encontro, ele pediu à senhora para ir devagar?

R. Sim, porque eu o abracei. Eu o esperei dentro de casa até ele entrar com meus três filhos, e as pernas não se aguentavam de emoção. E quando chegou perto de mim, eu o abracei com lágrimas. Não foi choro. Suavemente, lhe disse: “Guido, querido neto, te encontrei”. Mas ele me disse: “Calma, calma”. Eu não ia ser avassaladora. Mas nesse mesmo dia, depois de ficar horas conversando com meus filhos e comigo, quando se despediu me disse: “Tchau, abu”. Já tinha me incorporado, já era a avó. Porque os outros netos que tenho me chamam de abu. Tudo o que veio depois é muito bonito. É um rapaz muito bom, tudo que diz e faz é positivo. E aceita, não se nega. Hoje está se reunindo sozinho com os primos. O que vai acontecer? Que Deus o ajude. Vai ser uma reunião de meninos, de jovens, onde vão falar entre eles, não vai haver nenhum tipo de freio.

P. A senhora explicou muito bem que alguns netos não querem vir às Avós porque temem que seus pais adotivos sejam presos...

R. Claro, porque há um crime. Agora, nesse caso, penso: são trabalhadores rurais. No campo, é comum darem as crianças. Há pessoas que têm 10 ou 12 filhos. Então dão um e dizem: “Por que você não cria para mim?”. E você cria e fica assim. No caso desse casal, alguém, o patrão, trouxe o bebê e disse: “Tomem, vocês não têm filho, e nunca digam para ele que não são os pais”.

Há um fundamento: o criaram bem, com amor".

P. A senhora falou com eles?

R. Não, não.

P. Não quer?

R. Não, não. Ainda não é oportuno. O que vou falar para eles? Tem de ser a Justiça. A Justiça tem de falar com eles, para que contem exatamente como foi. A certidão de nascimento foi assinada por um policial médico. Então, o que os repressores fizeram para tirá-lo dos braços da mãe até chegar lá? Isso está nas mãos da Justiça. E se nós sabemos de alguma coisa, informamos à Justiça. Mas incomodar as pessoas... Ir até lá, não.

As Mães [da Praça de Maio] ficaram buscando os filhos; as Avós, buscando os netos".

P. Como foi que seu neto a encontrou?

R. Ele dizia que sentia um ruído dentro. Essa palavra: ruído. Ele dizia: “Como essas pessoas que dizem ser meus pais não têm nenhuma das ambições que eu tenho? De estudar... Ele lia, lia, lia. E chegou um momento em que começou a pensar, sobretudo, quando lhe disseram que eles não eram seus pais.

P. Quem disse?

R. Alguém, não sei. Certamente vão intimar essa pessoa. Porque, com certeza, muita gente sabia. Quando um sabe, todos sabem... Que ele não era filho desse casal. E perguntou a eles e eles disseram que sim – que eram pais adotivos. E a partir daí decidiu procurar.

Não concordamos com a forma de agir do grupo de mães de Hebe de Bonafini e concordamos com todos os demais organismos".

P. O que aconteceu com outros pais que registraram como próprios esses filhos que eram adotados?

R. Qualquer pessoa que registra como próprio um filho que não é está cometendo um crime. Isso acontece aqui e na China. Porque se não for assim, roubemos as crianças, tudo bem, nada acontece. Esse crime tem uma pena e as pessoas são julgadas e condenadas. Em geral, tentam minimizar a responsabilidade da mulher. Mas foram condenações muito importantes. Houve – também – adoções legais de pessoas inocentes. Aí, não tem nada a ver. Recorreram à lei e ganharam as crianças.

P. Mas no caso de Guido...

R. No caso de Guido há um crime cometido por essas pessoas. E como esse crime é de lesa-humanidade, então não prescreve, fica vigente até ser reparado. Então a inocência terá de ser proposta em função de sua cultura, da situação, do patrão... São atenuantes.

P. Essa é a lei. Mas o que a senhora desejaria?

R. Se for comprovada a inocência no sentido de que não sabiam dimensionar que o registro era um crime, porque eram pessoas sem cultura, não os condeno. Mas também há um fundamento: ele foi bem criado, com amor.

Se uma gestão do Governo é boa, é preciso apoiá-la. Não o partido político, mas a gestão".

P. Talvez outros netos possam alegar que seus pais adotivos foram condenados.

R. Bem, os crimes mais fortes foram provados, não? Eu, além disso, não sei se vão condená-los ou não. Minha posição é essa, mas a Justiça não vai dizer o que eu digo, vai fazer o que lhe cabe.

P. Li na imprensa que alguém que disse que não se deve esquecer que os pais desse menino pertenceram a uma organização terrorista.

R. Quem diz isso é que é terrorista. Porque esse slogan fez com que se justificasse essa morte. Eles eram opositores políticos. Não houve luta armada como em uma guerra. Aqui houve repressão terrorista do Estado. O que ainda hoje, tantos anos depois, sustenta isso... Ele é o terrorista, o que está enviando a mensagem para confundir. Porque já não há confusão, está escrito quem foi quem. Houve luta armada em um primeiro momento, em 73, 74, aniquilada completamente na operação Independência. E, sobretudo, passou lá por Tucumán. O que ficou depois já não era isso. Havia armas, sim. Às vezes, um casal estava em sua casa com os três filhos, por exemplo, e tinham armas, sim. Laura nunca teve, porque o pai sempre lhe abria a carteira. Mas, bom, poderia ter tido. Essas pessoas que estavam com os três filhos em casa, de repente veem que estão vindo para matá-los. E se defendem. É isso o que muitos estão fazendo hoje, chegam os ladrões, o dono da casa sai e os mata. E nem por isso são assassinos. Nisso havia ideologia, uma ideologia terrorista do Estado para matar o inimigo em vez de levá-lo preso. Quando Laura desapareceu, eu disse ao general Bignone em uma audiência particular: “Se ela, para vocês, cometeu um crime, julguem-na e condenem-na, pois há leis”. E me disse que não. Mataram todos eles. Esse é o terrorista.

Ninguém vai duvidar das Avós e dizer que mentimos nem que usamos dinheiro que não se sabe para onde vai".

P. Em que momento as Avós se separaram das Mães da Praça de Maio? A senhora disse em uma entrevista que se deveu às metodologias diferentes.

R. Não, não é bem isso. Quando a ditadura começou e começaram a sequestrar pessoas, não falávamos de desaparecidos. “Devem estar nas prisões, vá saber onde.” Começamos a nos reunir na Praça de Maio, em frente à Casa do Governo, pais, irmãos, esposas, avós, todos. Éramos o conjunto todo. Depois, vendo que, com o passar do tempo, surgia um trabalho específico para as avós, de procurar as crianças, criamos alguns meses depois um grupo de avós como Avós. O Mães continuou procurando os filhos, o Avós procurando os netos.

P. Em que ano?

R. Em 77. Nós nascemos em outubro de 77 e as Mães, em abril do mesmo ano. A divisão é entre as mães, e não entre as avós. Houve uma cisão em 1986 na qual uma líder não aceitava, não se entendiam, não se davam bem e decidiram separar-se em um grupo que passou a se chamar Mães da Praça de Maio Linha Fundadora. De um lado está a senhora Hebe de Bonafini, de outro Marta Vásquez – a linha fundadora. A divisão continua.

P. Mas a senhora considera que há uma divisão entre Avós e Mães?

R. Não. Quer dizer, não nos damos bem com Hebe de Bonafini. Mas sim com a senhora Marta Vásquez.

P. Então é uma questão pessoal?

R. Não, não, não. É uma questão ideológica, de atitude diante dessa luta. Não concordamos com a forma de agir do grupo de mães de Hebe de Bonafini e concordamos com todos os demais organismos. Mas não por alianças, mas porque tentamos estar sempre juntas. Mas chega um momento em que isso já não acontece. Nós estávamos falando com as paredes, era mais guerra do que convicção e dissemos: “Com essa senhora não dá”.

P. Mas em que consiste a diferença?

R. Na ideologia. Ela insulta, ofende, desmerece... E em certo momento disse: “Não dá para encontrar os netos, estão perdidos, são irrecuperáveis”. E hoje se alegra.

P. A senhora acredita que a afinidade que a senhora nunca escondeu para com Néstor e Cristina Kirchner pode ter distanciado outras pessoas do Avós?

R. Só alguém mal intencionado pode dizer e nos chamar de oficialistas. Mas se uma gestão do Governo é boa, é preciso apoiá-la. Não o partido político, mas a gestão. Apoiamos um Governo que faz coisas, que nos abre as portas, nos consulta e nos ajuda economicamente. Com uma prestação – de contas –, atenção, peso por peso, centavo por centavo, com auditorias permanentes. Porque nunca vai acontecer de o dinheiro escapar pelas frestas. Porque eu sou a responsável aqui. Ninguém vai duvidar das Avós e dizer que mentimos nem que usamos dinheiro que não se sabe para onde vai, nem que ninguém enriqueceu.

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