Vidas inventadas
A cambojana Somaly Mam, que falsificou parte de sua vida para arrecadar fundos para as escravas do sexo, se juntou à lista dos fabuladores que levaram as suas mentiras longe demais
Ela se criou em um pequeno vilarejo do Camboja, às margens do rio Mekong, com um homem mais velho a quem chamava de avô e que a maltratava. Foi vendida aos 13 aos e, depois de passar por um casamento forçado, acabou no mundo da prostituição contra a sua vontade. Este terrível passado ajudou Somaly Mam, prêmio Príncipe de Astúrias de Cooperação em 1998, a se tornar um dos símbolos mais populares da luta contra a escravidão sexual e levantar milhões de dólares para sua causa. Mas o suposto pesadelo que foi a sua infância agora ficou comprometido. A ativista renunciou no fim de maio depois que uma investigação independente, encomendada pela sua fundação após graves denúncias da imprensa, descobriu que alguns fatos da sua biografia eram falsos.
Muitos dos detalhes narrados por Mam – e por algumas das meninas que garante ter salvado – não encaixavam. Nem mesmo os detalhes das vidas fabuladas de outros personagens que, seja por dinheiro ou por reconhecimento público, conseguiram enganar durante anos especialistas, familiares, amigos e a opinião pública. As contradições desmascararam Enric Marco, que durante três décadas fingiu ser um prisioneiro do campo de concentração nazista de Flossenbürg; Alicia Esteve Head, que se fez passar por vítima dos atentados do 11 de setembro de 2001 sem nem sequer ter estado em Nova York naquele dia e chegou a presidir uma associação de vítimas, e Rigoberta Menchú, a líder indígena guatemalteca que enfestou a sua biografia com algumas mentiras ocasionais piedosas. “Há dois tipos de mentirosos”, explica o professor de Psicologia da Universidade de Murcia, José María Martínez Selva, autor de vários livros sobre a mentira. “O primeiro tipo é o dos mentirosos crônicos, que têm muita dificuldade em controlar o seu comportamento e estão mais perto da psicopatologia. O segundo corresponde a pessoas que usam a mentira como ferramenta para alcançar fama e dinheiro”, diz ele. Neste último grupo estão Mam e Marco.
O problema é que, quanto mais o tempo passa, mais detalhes dão e mais inconsistentes as suas histórias se tornam. Somaly Mam abriu, sem saber, a primeira brecha na sua biografia em abril de 2012. Diante de um painel de especialistas das Nações Unidas disse que o Exército cambojano havia matado oito meninas durante um ataque contra um dos seus centros de acolhimento. Esta declaração não passou despercebida no Camboja. “A notícia foi amplamente coberta pela mídia local; agentes de alto escalão da polícia e funcionários da ONU naquele país negaram”, lembra o jornalista britânico Simon Marks, que então trabalhava no jornal Cambodia Daily em Phnom Penh. A própria Mam admitiu que tinha exagerado.
A sua excessiva tendência para a invenção foi tema de especulação por algum tempo entre as ONGs do país e o rumor chegou até Marks. “Foi assim que eu comecei a pesquisar”, disse ele em Bruxelas, onde agora trabalha para o mesmo jornal. As suas reportagens tinham o objetivo de reconstruir a rede de mentiras fabricadas pela ativista. Vizinhos da cidade natal de Mam, Thloc Chhroy, contaram que a vida da pequena Mam foi mais normal do que ela havia relatado. Ninguém se lembrava do avô, nem do homem que supostamente teria comprado a menina. Uma testemunha lembrava dela com os seus pais e, segundo uma mulher da idade da ativista, ela estudou até o ensino médio.
Também há dúvidas sobre a veracidade do testemunho de uma das vítimas resgatadas pela fundação, Long Pros, que garantiu ter perdido um olho por causa das pancadas dadas por um cafetão furioso. Segundo a sua família e o seu médico, foi devido a um tumor. Um ex-assessor da fundação e o ex-marido Mam, o francês Pierre Legros, com quem se casou em 1991 depois de deixar a prostituição, negam que a filha da ativista foi, como ela argumenta, sequestrada por traficantes em vingança pelo trabalho da sua mãe. Legros diz que ela fugiu com o namorado.
Muitos desses fatos que agora estão sendo questionados foram contados por ela mesma na televisão e em suas memórias, The road of lost innocence (2005). A sua difícil história pessoal a tornou mais famosa e deu mais visibilidade à sua fundação, que salvou milhares de mulheres presas em bordéis no Sudeste Asiático. Mam conseguiu atrair à sua causa líderes políticos como Hillary Clinton e atrizes como Meg Ryan e Susan Sarandon. A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, faz parte do conselho de assessores da sua fundação. A rainha Sofia, da Espanha, promoveu a sua causa e, inclusive, foi visitá-la no hospital quando a ativista ficou doente em uma viagem a Madri.
Em 1998, Mam recebeu o prêmio Príncipe de Astúrias compartilhado com outras mulheres, entre elas Rigoberta Menchú. Fontes da Fundação Príncipe de Astúrias disseram que não está prevista a retirada do prêmio. Os estatutos da organização também não preveem essa possibilidade. Na Espanha, a ONG abriu um escritório em Madri, na Calle de Canarias, para promover uma campanha internacional contra o tráfico sexual. Agora está vazio. Já não existe mais atividade. Entre 2003 e 2008, recebeu 1,86 milhão de euros (5,7 milhões de reais) da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. A agência teve que recorrer ao Boletim Oficial do Estado – por não poder se comunicar através do último domicílio conhecido – para reivindicar à filial espanhola que justifique fundos concedidos de pelo menos 79.177 euros (243.000 reais) ou que o montante seja devolvido. Normalmente, o pedido não significa necessariamente que houve irregularidades, mas que existe uma pendência para justificar o dinheiro doado para um projeto ou que este não tenha sido realizado. De qualquer forma, a ONG não está mais ativa na Espanha, segundo uma ex-colaboradora.
A fundação de Mam recebeu 1,86 milhões de euros da AECID, que agora exige a justificativa de alguns fundos
As reportagens de Simon Marks tiveram um efeito relativamente limitado até que o texto foi publicado na revista norte-americana Newsweek no fim de maio. A Somaly Mam Foundation, a face internacional da organização, que teve sua origem a partir da ONG Afesip Camboja e Afesip Laos, solicitou que uma empresa independente comprovasse o passado da sua presidente. As conclusões do relatório não foram divulgadas, mas levaram à saída de Mam do comando da organização.
“Ninguém realmente quer acreditar que uma mulher tão bela e encantadora, que defende uma causa extremamente nobre, seja capaz de se comportar assim”, diz Marks. “Com o passar do tempo, Somaly Mam se tornou a nossa heroína e a admirávamos, sem questionar realmente o que ela dizia ou fazia”, acrescentou. Mam não deu detalhes sobre o que é verdade ou mentira. Seus defensores dizem que pelo menos a sua vida inventada ajudou a levantar mais fundos contra a escravidão sexual. Seus críticos alegam, por outro lado, que a situação significa um duro golpe para a credibilidade das ONGs. O objetivo das invenções de Mam era arrecadar fundos para ajudar as mulheres, mas também é verdade que, como parte do sucesso das suas campanhas, o seu salário cresceu ano a ano até chegar a 138.000 dólares (310.334 reais) em 2012.
As meias verdades e as meias mentiras são o molho de algumas biografias, como a de Rigoberta Menchú, defensora de outra causa nobre: os direitos dos índios maias que, entre 1978 e 1983, sofreram uma violenta repressão por parte do Exército da Guatemala. Um genocídio que deixou 200.000 vítimas, entre mortos e desaparecidos. O livro que levou a ativista a conquistar o Prêmio Nobel da Paz, Yo, Rigoberta Menchú, está cheio de dados “incertos”, com “experiências que ela nunca viveu”, de acordo com as conclusões do antropólogo norte-americano David Stoll, publicadas no fim dos anos noventa.
O especialista descreveu uma série de imprecisões, exageros e falsidades e concluiu que Menchú usou na sua autobiografia experiências de outras pessoas de acordo com as suas necessidades. A líder indígena negou que tivesse mentido, embora reconhecendo que a precisão histórica não era a sua prioridade: “Minha mãe foi estuprada, assassinada (...) Se foi ou não comida pelos animais, vamos deixar que os pesquisadores trabalhem, e pode ser que a mãe comida pelos animais seja a mãe de outra índia”, disse Menchú, que em 2007 foi candidata presidencial. A guatemalteca sempre explicou que nunca tinha ido à escola, mas depois admitiu ter assistido a aulas em um convento de freiras sem estar matriculada. Rigoberta disse que mentiu sobre esse ponto para não constranger as professoras.
Não é a única biografia exagerada ou maquiada para captar o interesse de outros. “Usam a informação que costuma ser em parte certa e em parte falsa; tornam suas as experiências dos outros, e outros acreditam neles porque suas vidas são impressionantes e ninguém está pensando em questionar a vida de uma pessoa que diz ter sofrido tanto”, explica Héctor González, doutor em Psicologia e professor da Universidade Complutense de Madri.
Muitos acabam sendo descobertos porque levaram a sua mentira longe demais. Uma vez desmascarados, alguns confessam e se justificam. “As pessoas me ouviam mais, e o trabalho de divulgação era mais eficaz”, justificou Enric Marco, em maio de 2005. Ele nunca tinha estado em Flossenbürg como prisioneiro. Visitou o campo de extermínio nazista pelo menos uma vez, muitos anos após a Segunda Guerra Mundial. “Suponho que foi ver o local para se familiarizar com ele e obter alguns dados para enriquecer suas histórias”, diz Benito Bermejo, o historiador que descobriu o caso.
Quando ele conheceu Marco e notou a forma como se esquivava na hora de dar detalhes sobre sua experiência devastadora como o deportado número 6.448, sentiu que algo estava errado. “Eu tinha lido algumas coisas sobre ele e senti que alguma coisa não se encaixava; mas eu pensei que esses tipos de relatos de vítimas que passaram por grandes traumas muitas vezes costumavam ser confusos”, lembra Bermejo. “Depois, conversando com ele pessoalmente, se mostrou incomodado, esquivo, até mesmo de forma violenta; me perguntou por que eu estava me metendo neste tema, que havia coisas mais interessantes para pesquisar”, acrescenta. “É isso que o presidente de uma associação de ex-presos me diz? Não fazia sentido”, lembra.
Marco esteve à frente da Amical Mauthausen, com sede em Barcelona, e deu dezenas de palestras sobre os horrores dos campos nazistas. Ele fabricou a sua mentira em 1978. Um documento oficial da época, encontrado pelo historiador, mostrou que ele esteve na Alemanha durante o conflito armado, porém não como deportado, mas para trabalhar voluntariamente graças a um programa de colaboração acordado na época por Franco e Hitler, que precisava de mão de obra para preencher as vagas deixadas por aqueles que tinham ido à frente de batalha. Marco passou seis meses em uma prisão – o motivo não está claro –, não em um campo de concentração. Como todo bom impostor que não quer ser pego, ele evitou expor a sua mentira às verdades dos outros: vítimas verdadeiras contaram a Bermejo como Marco os evitava quando se encontravam em algum evento. “Uma das vítimas de Mauthausen me disse uma vez: ‘Esse Marco desliza como óleo’”, lembra o historiador. O fato de que os deportados compartilhavam das suas suspeitas o encorajou a tomar uma decisão e denunciar as mentiras do catalão.
Muitos impostores baseiam as suas mentiras em fatos tão sensíveis e difíceis que é complicado duvidar das suas histórias. “O elemento não racional, afetivo e de prestígio, da grande mentira é que eles querem alcançar notoriedade inspirando piedade. Seguindo a mesma tática das crianças que querem chamar a atenção chorando sem motivo, ou fingindo terem sido agredidos, os impostores alcançam o objetivo de se tornarem o objeto de admiração no centro do grupo social inventando ou distorcendo uma infância ou juventude terríveis (Rigoberta Menchú, Somaly Mam), ou o sofrimento dramático dos campos nazistas de concentração (Enric Marco) ou da tragédia do 11-S (Tania Head)”, diz Miguel Catalán, professor de Ética da Comunicação da Universidade Cardenal Herrera-CEU de Valência.
A forma extrema da mentira é conhecida como pseudologia fantástica, uma tendência a mentir compulsivamente, explica Héctor González. Neste perfil se encaixa Alicia Esteve Head, apelido de Tania Head, que se tornou a vítima perfeita do 11-S. “Todos nós nos apaixonamos por ela. Era cativante, elegante e sofisticada, e sorria gentilmente”, disse o jornalista Angelo Guglielmo, em 2012. Esteve garantiu ser uma das sobreviventes do ataque às Torres Gêmeas, onde dizia ter trabalhado como executiva do banco de investimento Merrill Lynch.
Ela contou, emocionada, que perdeu seu noivo, Dave, que estava na outra torre. Na verdade, quando os aviões atingiram o World Trade Center, Esteve, que, como filha de uma britânica falava perfeitamente inglês, estava em Barcelona, onde morava no bairro de Sarrià. No entanto, conseguiu fazer com que todos acreditassem na sua história durante anos, inclusive Guglielmo (coautor do livro e documentário La mujer que no estuvo allí, sobre as andanças da espanhola). Ela assumiu uma associação de vítimas que cofundou e foi fotografada com várias autoridades da cidade, como o prefeito Michael Bloomberg e o ex-prefeito Rudolph Giuliani, a quem acompanhou em uma visita guiada ao marco zero.
“Os mentirosos compulsivos procuram o reconhecimento social, a admiração e vão construindo a mentira”, explica Héctor González. “Dizem que têm trabalhos interessantes, que conhecem pessoas interessantes e, acima de tudo, criam um personagem que assimilam como próprio: a melhor estratégia do engano é o autoengano”. A vida inventada de Esteve custou o seu emprego em Barcelona. Agora, ninguém sabe onde ela está. Martínez Selva a considera uma fabuladora nata: “Mentia na escola, no instituto, na escola de negócios e acredito que, onde estiver agora, estará mentindo”.
Psicopatas, trapaceiros e vigaristas
Jean-Claude Romand. No caso deste francês, que se fez passar por médico da Organização Mundial da Saúde durante anos, a mentira acabou em tragédia. Viveu uma vida dupla durante anos e, quando estavam a ponto de desmascará-lo, matou a sua família em 1993. A sua história inspirou Emmanuel Carrère a escrever L'Adversaire (O adversário, em tradução livre).
Frank Abagnale. Encarnou várias personalidades (médico, advogado e piloto) nos anos sessenta e passou cheques falsos. Sua vida foi contata por Spielberg no filme Prenda-me se for capaz.
Stephen Glass e Tommasso Debenedetti. Esses jornalistas não inventaram as suas vidas, mas a dos outros. Escreveram com uma só fonte: a sua imaginação. Debenedetti publicou entrevistas com Philip Roth, Gore Vidal, Toni Morrison... todas falsas. Glass foi descoberto em 1998 depois de publicar uma reportagem com um suposto hacker de 15 anos que foi resultado de uma invenção.
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