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Adeus, troika, adeus

Em 17 de maio, Portugal encerrou seu programa de financiamento Foram três anos de austeridade que empobreceram a população

Antonio Jiménez Barca
Pichações em Lisboa contra as políticas da troika.
Pichações em Lisboa contra as políticas da troika.Hugo Correia (Reuters)

Os inspetores da troika que nos últimos três anos visitaram bimestralmente o Governo luso para ameaçá-lo com medidas de ajuste já deram adeus a Lisboa. Fizeram-no formalmente neste sábado. Acabaram-se, pois, os telejornais cheios de imagens de senhores sérios, de terno e maleta, entrando e saindo de ministérios sem nunca dizer nada às câmeras. No fundo, não vão embora para sempre. Em setembro, de fato, voltarão para perguntar pelo orçamento de 2015. Não foi em vão que o Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Europeia e o Banco Central Europeu (BCE), a famosa troika, deixaram aqui um empréstimo de 78 bilhões de euros (236,4 bilhões de reais), que esperam ver devolvido antes de 2042.

Mas serão visitas de outra natureza, meramente consultivas, quase de cortesia. Portugal, para o bem e para o mau, recuperou sua plena autonomia financeira (e política) e é novamente dono das suas próprias decisões. Há três anos, quando pediu o resgate dos citados 78 bilhões de euros, sob o Governo do socialista José Sócrates, o país se encontrava à beira da bancarrota, sem recursos para fazer frente aos pagamentos correntes em curto prazo. Os juros do bônus portugueses com vencimento em 10 anos disparavam então para acima de 10,6%, um pesadelo que impossibilitava a ida aos mercados para procurar dinheiro sem o risco de se arruinar logo de cara. O déficit público, no final de 2010, piorou para abissais 9,8% do PIB. Houve quem assegurasse então que Portugal, como país, era um fracasso contábil, e que se seus resultados fossem os de uma empresa qualquer, esta deveria fechar as portas e esquecer de si mesma. Hoje, esses mesmos juros flutuam em torno de um suportável 3,6%, e o déficit de 2013 se ajustou ao solicitado pela troika, inclusive com um décimo de sobra: 4,9%.

A agência de qualificação Standard & Poor’s (S&P), uma das que condenaram há três anos os bônus portugueses à categoria taxativa de “lixo”, emitiu nesta semana uma nota em que assegurava que a recuperação econômica lusitana “é mais rápida que o previsto” e prognosticava um crescimento de 1,4% em 2014, após três anos de queda ininterrupta. Em 2012, já com o Governo do conservador Pedro Passos Coelho (eleito em junho de 2011), Portugal tocou o fundo, com um retrocesso de 3,6%.

Na falta de uma rede financeira, Lisboa se fia na benevolência dos mercados

O próprio Passos Coelho anunciou, há dois domingos, em um discurso televisionado no horário de maior audiência, que Portugal sairia do resgate pela porta da frente, como a Irlanda, isto é, sem nenhum tipo de ajuda preventiva europeia. Assim foi: sem rede financeira, fiando-se por inteiro na previsível (embora só a curto prazo) estabilidade e benevolência dos mercados.

Há quem recorde os riscos dessa manobra: bastará que os juros da dívida voltem a subir, devido a uma convulsão política desagregadora na Ucrânia ou, simplesmente, pelo contágio de uma reestruturação da dívida grega, para que tudo volte a ficar contra o país. “Ao mínimo sinal de instabilidade na Europa, corremos o risco de que os mercados se voltem contra as vítimas de costume”, afirmava há alguns dias um ministro ao semanário Expresso. Mas outros membros do Governo dizem que o país conta com um colchão financeiro de mais ou menos um ano para driblar supostas turbulências. Mais ou menos a garantia, em termos de tempo, que cobriria um resgate preventivo. Politicamente, o passo foi significativo e se trata, de fato, da primeira boa notícia desde sua posse para um Governo desgastado e em baixa nas pesquisas.

Até aqui chegam a macroeconomia e as cifras e dados que começam a se encaixar após três anos de troika. A economia porca e o lado amargo da saída limpa do resgate são encarnados, por exemplo, por Florbela Fernandes, de 42 anos, funcionária da Prefeitura de Évora. Portugal inteiro saiu mais pobre deste túnel de mais de mil dias algemado à troika. Mas foi a classe média, e em especial os funcionários públicos e os pensionistas, que arcaram com a pior parte.

“Estou trabalhando e contribuindo há 20 anos. E agora ganho o mesmo que ganhava quando tinha dois anos de Prefeitura”, diz Fernandes. Depois, faz suas próprias contas: “Em 2011 eu ganhava por mês 1.400 euros [4.243 reais] e tinha dois salários extras. Agora, depois de três anos de cortes e mais cortes, recebo 1.050 [3.182], e só tenho um salário extra. O outro eu gasto em pagar os aumentos de impostos.” Seu marido, policial, também sofreu uma redução parecida. Isto se traduz em renúncias, cada vez mais custosas, que parecem não ter fim: venderam um dos carros, esqueceram-se das férias de verão, depois das viagens de fim de semana, o filho abandonou os cursos de aperfeiçoamento de matérias, depois decidiu repetir o ano para melhorar as notas, e porque assim a família economiza para a universidade, cada vez mais eles se veem obrigados a recorrer aos avós quando surgem gastos imprevistos, nos supermercados compram quase exclusivamente as marcas brancas, e demoram muito tempo para comprar, depois de olhar os preços várias vezes…

EL PAÍS

Também a combativa Maria do Rosário Gama, de 70 anos, professora aposentada, integrante da associação de pensionistas APRE, tem visto sua vida, que considerava já a salvo de surpresas, apequenar-se e empobrecer-se diante do aumento de impostos e da redução do valor de sua pensão. Antes da etapa troika, Gama recebia 1.900 euros por mês. Agora não chega a 1.500. Também desapareceu um pagamento extra. Não só isso. “O imposto municipal subiu, subiu a eletricidade, subiu o IVA, subiram os transportes, subiu a saúde...”, diz quase de cabeça esta pensionista que, sobretudo, recorda que o valor de seu pagamento mensal não é um favor do Estado a seus idosos, e sim um direito adquirido que tanto ela como o restante dos aposentados portugueses ganharam ao contribuir mês a mês durante seus anos de trabalho. A crise, agora, a cerca por todos os lados: seu filho, com um emprego precário, se vê obrigado a recorrer a ela para levar em frente sua família, em uma espécie de círculo vicioso que cada vez afeta e engole mais as pessoas.

Toda esta economia rala se reflete em outras estatísticas sombrias que trazem por sua vez uma radiografia verdadeira dos efeitos destes três anos angustiantes. Em 2008, nasceram 104.000 portugueses. Em 2012, em pleno furacão da crise —aquele ano o PIB caiu mais de 3%— foram somente 89.000. Há três anos saíram do país 23.000 portugueses em busca de um futuro no exterior. Em 2012, foram quase 52.000, segundo a revista Visão. O desemprego subiu de 12% para mais de 15% e disso não baixa. Portugal pareceu voltar muito atrás. Nas férias de Natal de 2011, por exemplo, os refeitórios escolares de determinados povoados e cidades abriram as portas para dar de comer aos filhos das famílias mais desfavorecidas (muitas pertencentes a uma classe média empobrecida repentinamente). Foi algo que abalou o país, estupefato diante do tamanho da crise que o abocanhava. Agora assombra menos, mas segue acontecendo: no último Natal, 61 localidades portuguesas decidiram abrir seus refeitórios escolares para alimentar as crianças de famílias sem recursos.

Todos esses exemplos (e outros que vão desde a queda do consumo, consequência do aumenta do IVA para 23,2% e a redução dos ganhos, ao aumento da venda de ansiolíticos, por exemplo) formaram um evidente estado de ânimo pessimista que parece arrastar todo o país e que vai ser difícil de extirpar. De fato, no ano que adotou as primeiras grandes medidas de austeridade, o Governo de Passsos Coelho sofreu uma onda de manifestações que o fez cambalear. Mas os protestos foram adormecendo e deram espaço a uma espécie de resignação fatalista.

Sem ir mais longe, nem Florbela Guterres nem Mario do Rosário Gama acreditam que voltarão alguma vez a levar a vida que levavam antes da chegada da troika. As duas estão convencidas de que o empobrecimento é definitivo. Asseguram, com uma convicção definitiva e incomovível, que ainda que a etapa da troika tenha acabado no sábado 17 de maio, seus efeitos permanecerão em seu dia a dia por muito tempo.

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