_
_
_
_
_

A Assembleia Nacional francesa aprova um corte de gastos histórico

O plano de estabilidade recebe 265 votos a favor e 232 contra. Valls afirma que o ajuste é necessário para a soberania do país

Manuel Valls durante seu discurso na Assembleia Nacional em Paris.
Manuel Valls durante seu discurso na Assembleia Nacional em Paris.E. F. (AFP)

Com mão de ferro e sem luva de seda, apelando à legitimidade do Governo e à responsabilidade e a credibilidade internacional da segunda maior potência da zona do euro, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, defendeu nesta terça-feira os maiores cortes de gastos públicos na história moderna da França, diante de uma Assembleia Nacional dividida e de um Partido Socialista (PS) fraturado. Finalmente, conseguiu vencer a votação com 265 votos pelo sim, contra 232 nãos e 41 abstenções nas filas do PS.

Valls apresentou o Programa de Estabilidade trienal que a Comissão Europeia exigiu de Paris para reduzir o déficit da França como uma “decisão soberana”, imprescindível para criar emprego, melhorar a competitividade das empresas, voltar a crescer, rebaixar o déficit – “que nos asfixia”, enfatizou – e garantir “a justiça social e o poder aquisitivo dos mais fracos”.

“Não podemos viver mais tempo acima das nossas possibilidades”, proclamou Valls, que pediu com veemência o apoio simbólico dos deputados socialistas, exigindo deles “coerência, coragem e responsabilidade”. O Governo, acuado pela reação interna, havia decidido que cada parlamentar da sua bancada poderia votar como quisesse.

O primeiro-ministro adotou um tom quase apocalíptico para conclamar à união uma maioria devastada pela derrota nas recentes eleições municipais: “Não se trata de um voto qualquer, é um voto decisivo que marcará profundamente a evolução deste país. O resultado condiciona ao mesmo tempo a legitimidade do Governo, sua capacidade de governar e, sobretudo, a credibilidade da França”.

Valls foi ovacionado pela bancada partidária da maioria ao final do seu discurso. Negou que a tesourada de 50 bilhões de euros (153,3 bilhões de reais) no período 2014-2017 seja “um plano de austeridade”; afirmou que a prioridade continua sendo investir em educação e em criar emprego para os jovens; acrescentou que a redução de 30 bilhões de euros (92 bilhões de reais) em impostos e encargos trabalhistas às empresas “deve servir” para gerar emprego – embora não tenha dito quanto, quando ou como –“e não para aumentar os dividendos e os salários dos diretores”, e estimulou os sindicatos e os “representantes do povo” a vigiarem para que a entidade patronal cumpra a sua parte.

O primeiro-ministro buscou dar um verniz social às receitas neoliberais abraçadas em janeiro pelo presidente François Hollande, quando este anunciou os cortes maciços dos gastos e ofereceu à entidade patronal MEDEF um pacto de responsabilidade sem contrapartidas, que o presidente tentou compensar mais tarde com um pacto de solidariedade: “A riqueza é criada pelas empresas, e o emprego, também”, disse Valls, que recordou que a França perdeu dezenas de milhares de empregos nos últimos anos – hoje, 3,6 milhões de pessoas não realizam nenhuma atividade –, e que é preciso “reduzir a desvantagem competitiva entre a França e Alemanha”.

“A redução dos custos trabalhistas vai se intensificar. Zero carga para os trabalhadores que ganham salário mínimo a partir de 1º. de janeiro de 2015 é uma incitação importante para os empresários”, afirmou Valls, admitindo que o pacto gerou “dúvidas” entre os grupos políticos, inclusive o socialista, mas defendeu que o ajuste fiscal “é justo, bem repartido, e não é duro nem brando, e sim calibrado para assegurar a recuperação econômica”.

Depois, prometeu que Hollande exigirá a partir de junho em Bruxelas uma nova política monetária e de investimentos para estimular o emprego e “reduzir o elevado preço do euro”, e justificou as medidas com alguns lugares-comuns reais: “Faz 40 anos que gastamos mais do que produzimos. A dívida nos custa 45 bilhões de euros (276 bilhões de reais) anuais. Fizemos corpo mole para tomar as medidas que eram necessárias. Nunca era o momento de tomá-las”.

“A França é um grande país”, acrescentou Valls, recorrendo a infalível menção à grandeur. “Mas deve garantir sua independência financeira e sua soberania, ou seja, não depender dos mercados financeiros e não fazer pesar a dívida sobre as futuras gerações”. A França paga hoje em torno de 2% para financiar sua dívida soberana, a menor quantia em décadas. Mas arrasta o fardo de uma dívida pública equivalente a 96% do PIB.

“Nestes anos empobrecemos coletivamente. E os franceses não podem aguentam mais elevações de impostos”, disse o ex-ministro do Interior, que evitou recordar que o ajuste inclui um posterior aumento tributário avaliado em 10 bilhões de euros (3 bilhões de reais) para os contribuintes que pagam imposto de renda de pessoa física.

O programa de estabilidade acertado pelo Governo com Bruxelas reduzirá em 18 bilhões de euros (55,2 bilhões de reais) os gastos do Estado, e em 11 bilhões (33,9 bilhões) o repasse a organismos locais e regionais. Além disso, cortará 10 bilhões (3 bilhões) em saúde e 11 bilhões (33,9 bilhões) em outros itens. Mas Valls transformou a contestação dos deputados socialistas aos ajustes em uma oportunidade e um mérito pessoal. Gabou-se de ter instaurado um novo método de diálogo com o Parlamento, e citou as concessões feitas à maioria socialista depois do duelo sem precedentes vivido nas últimas semanas entre o chefe de Governo e mais de uma centena dos 291 parlamentares do PS.

O primeiro-ministro citou o aumento de um abono extraordinário – 440 euros (1.354 reais) brutos anuais – para os funcionários que ganharem o salário mínimo a partir de 2015, e a atualização pelo IPC dos subsídios sociais e das pensões inferiores a 1.200 euros (3.680 reais) a partir do segundo semestre deste ano. Para a oposição, esse aumento do abono terá um efeito nulo, já que os afetados terão menos atendimentos sociais e pagarão mais IRPF.

Os cortes atingirão 6,6 milhões de funcionários públicos e quase 15 milhões de pensionistas nos próximos dois anos e meio. Quase todos os pagamentos estatais passarão um ano congelados. Os salários dos funcionários – congelados desde 2010 –, as pensões e as ajudas familiares e a moradia só serão atualizadas em 1º. de outubro de 2015, o que permitirá uma economia de 2 bilhões de euros (6,15 bilhões de reais), ou 4 bilhões (12,3 bilhões) se o diálogo social permitir congelar também as pensões complementares.

Valls confirmou que o Governo criará nos próximos anos 30.000 postos de trabalho adicionais em educação, como estava previsto, e outros, cuja cifra não precisou, na polícia e na Justiça, ao passo que a folha de pagamentos dos demais ministérios continuará diminuindo. A dieta de emagrecimento do Estado francês, o mais bem dotado, o mais protetor e também o mais caro da Europa –mantê-lo custa 56% do PIB – começou.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_