A última copla de Paco de Lucía
‘Canción andaluza’, o disco póstumo do grande violonista flamenco que sai às lojas em 29 de abril, recria oito versões tradicionais de um gênero musical que lhe apaixonava
Foi a trilha sonora de sua vida. No universo flamenco era um segredo que Paco de Lucía sentia um amor platônico por Marifé de Triana e que a copla, gênero musical tradicional espanhol, era uma das fontes de inspiração do violonista espanhol mais universal. Canción andaluza, como ele denominava a tonadilla (uma copla que inclui apresentações teatrais) dá título agora a seu disco póstumo, integrado por oito emocionantes versões de clássicos do gênero, nos quais o seu violão soa com a força harmônica de uma orquestra. São também seus os bandolins, bandolinetas, alaúde árabe e guitarró, uma espécie de cavaquinho. A parte sentimental fica na zambra (dança flamenca) dedicada à sua esposa Gabriela: “Te he de querer mientras viva” (Te amarei enquanto viver).
Com o disco completamente acabado, como ele, um perfeccionista incurável, gostava, Paco de Lucía foi para Havana, Cuba, e depois para Cancún, a praia mexicana onde foi pescar, afastado de tudo e onde faleceu em fevereiro, vítima de um infarto. Canción andaluza se ouve agora como um testamento, mas também como o tipo de música que queria fazer nesse momento concreto de sua vida. De Lucía, que passou boa parte de uma carreira iniciada quando era uma criança, em turnê por palcos do mundo todo, desfrutava criando trancado em seu estúdio. Desta vez, o Paco violonista pesou mais que o Paco compositor e, certamente, este é seu disco estrela como arranjador.
Deixou o disco pronto e foi a Cancún, onde pretendia passar uma temporada para pescar
O músico de Algeciras terminou, gravou e remasterizou um trabalho que Universal, a gravadora com a que trabalhou durante meio século, lançará mundialmente nesta terça-feira. Graças à tecnologia, todo o material foi preparado pessoalmente no estúdio de sua casa da ilha de Maiorca, a Casa Paco. Foi o primeiro dos 27 discos de sua carreira que foi montado dessa maneira. Ao autor de Cositas buenas gostava de entregar os temas bem rematados e as novas tecnologias lhe permitiam trabalhar completamente à vontade. A cantora espanhola Estrella Morente, o cantor de salsa venezuelano Óscar de León —que estava gripado no mesmo dia em que comemorava seu aniversário— e o cantaor de flamenco Parrita viajaram até a ilha balear para colocar suas vozes nas três faixas que não são instrumentais. Para os acompanhamentos, Paco de Lucía se rodeou pelos músicos de seu grupo com os que há uma década viajava para os shows, músicos como Piraña, Antonio Sánchez e Alain Pérez. Os arranjos da versão salseira de Señorita são de Pérez, um baixista cubano, que conseguiu se apropriar da paixão e da lírica da copla em um dos temas mais surpreendentes deste novo álbum.
Oscar de León, Parrita e Estrella Morente participam deste trabalho
“Pessoalmente foi uma bênção que me chamasse; estava em turnê há 10 anos no grupo, contagiado pela sua energia na hora de trabalhar. Em cada momento ao seu lado tive a impressão de me encontrar cara a cara com a história, junto a um mito, por isso viajei até Maiorca feilz. Quando cheguei, Piraña já havia gravado a percussão, Óscar colocava a voz e me pediu que fizesse uma versão de Señorita a levando o tema ao som (ritmo cubano), mas sem perder um ápice de seu aroma”, conta durante uma conversa telefônica enquanto estava no trem, a caminho de Madri.
Canción andaluza contou também com seus amigos Javier Limón e Alejandro Sanz. De Lucía convidou ambos para uma conversa em Madri, que se prolongou até a madrugada. Sua ideia, que agora fica no ar com sua perda, era encerrar de novo a composição de um disco muito flamenco “e invocado”. As aspas são de seu irmão Pepe, que falou desde Sevilha, atarefado nestes dias pela construção de um panteão para acolher os restos do músico falecido. Agora que Paco de Lucía entrou na lenda e que seu legado parece indiscutível, só se escutam louvores sobre sua pessoa. No dia de sua morte, Entre dos aguas, uma de suas composições mais universais, bateu um recorde histórico de downloads no Spotify, um serviço de música digital popular na Europa.
Pepe de Lucía, a pessoa com quem ele falava diariamente por telefone, a criança de outrora que caminhava de mãos dadas com seu pai em busca de dinheiro — gravaram juntos seu primeiro disco: Pepito y Paquito em 1962— para manter a família, o descreveu como “uma pessoa que nunca tinha nada definido”, alguém que poucas vezes ficava satisfeito depois de concluir um trabalho. “No entanto, sei que ele se foi depois de fazer algo que gostou muito. Sei que chorou de emoção escutando Ojos verdes", esclarece. Como artista, o violonista que quebrava a alma a Miguel de Molina continuava sentindo pavor na hora de entrar no palco. “Estou cagando de medo! Levo toda a vida nisso, sou velho e minhas pernas ainda tremem”, costumava dizer ao seu irmão. Também se notava cansado, como se seu “hermanito” fosse portador de uma dor contida. Como exemplo de seu caráter, Pepe lembra a tarde em que, pescando na ilha colombiana de San Andrés, Paco fez um corte muito grande entre um dos dedos de uma mão. Depois de uma recuperação cirúrgica, saiu para tocar e, como sempre, levantou o público, mas assim que abandonou o palco “se jogou no chão e se retorcia de dor”. Foram muitos os gênios que solicitaram seu acompanhamento, mas costumava negar. Disse “não” inclusive a Eric Clapton, quando o convidou para gravar juntos.
Sei que ele se foi depois de fazer algo que gostou muito", diz de seu irmão
Canción andaluza entrará para a história como sua última e definitiva criação. O último que compôs Paco de Lucía. Álbuns poderão ser editados com sua música gravada ao vivo ou reedições. “Nos discos rígidos da companhia não temos material inédito de Paco”, conta com pena Fernando Crespo, responsável pela área de flamenco da Universal. Embora Pepe de Lucía sentencia, enigmático: “É possível encontrar coisas. Tenho um arquivo dele enorme”.
Três metas sonoras do novo disco
María de la O. Canção favorita no inventário de Paco de Lucía. A composição data de 1933, foi escrita em Madri pelos poetas Salvador Valverde e Rafael de León com música do maestro Quiroga. Foi uma das peças-chave do repertório de Marifé de Triana, embora a primeira que a converteu em um sucesso foi Estrellita Castro, acompanhada pelo violão de Sabicas.
Ojos verdes. Composición também do trio anterior. Estrellita Castro a gravou e pouco depois Miguel de Molina. Depois da Guerra Civil, a canção se converte em um dos temas de repertório de Conchita Piquer. Paco de Lucía a gravou em um disco de copla em 1965, onde lhe deu um tom de bulería.
Señorita. Paco de Lucía completa seu álbum-homenagem à copla com uma deslumbrante versão salseira de Señorita, uma peça escrita por Rafel de León e Juan Solano. Criada junto ao baixista cubano Alain Pérez e a voz de Óscar de León. Um broche final para um disco e uma carreira.
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