“Por que as pessoas gostam tanto de mim?”
García Márquez fez de Cartagena o seu fio-terra na Colômbia, embora a fama dificultasse suas saídas à rua
García Márquez chegou com uma ideia publicitária. No meio de um enterro, um dos participantes diz que numa hora dessas o que ele mais queria era tomar uma Coca-Cola. Os responsáveis pela agência imediatamente ignoraram o insight. Foi nos anos sessenta, quando o colombiano fazia trabalhos de publicidade no México, e aparentemente era frequente que suas propostas fossem descabeladas demais para se concretizarem. Isso era o que contava um amigo dele na Cidade do México na segunda-feira passada, quatro dias antes da morte do Nobel de Literatura de 1982 e sete dias antes de a capital mexicana lhe prestar uma homenagem solene, com música clássica, e sem Coca-Cola.
Nessa mesma segunda-feira, em Cartagena das Índias, contava-se outra história sobre morte e sobre García Márquez. Era a história de um sonho que o escritor teve, no qual se via rodeado de amigos em um enterro com um clima jovial, mas que acabava de uma maneira deprimente para o protagonista: quando seus amigos vão embora do funeral, ele quer ir junto, mas lhe dizem que não pode, porque ele é o morto. “Acabou a sua festa”, disse alguém em sonhos a Gabriel García Márquez. Quem menciona a passagem é Gustavo Tatis, editor de cultura do jornal local El Universal, e diz isso por ocasião de uma vez que o entrevistou, no começo dos anos noventa, e lhe ocorreu perguntar sobre a morte. “Ele me disse que não entendia por que eu lhe perguntava por isso, e que não gostava de falar da morte”, diz Tatis ao lado do linotipo que imprimiu em 1948 o primeiro artigo jornalístico de García Márquez neste jornal, intitulado Ponto e Parágrafo.
Ponto e Parágrafo tratava da suspensão do toque de recolher que vigorava naquela época em Cartagena das Índias depois do assassinato, em Bogotá, do político liberal Jorge Eliécer Gaitán.
Muitos sentirão saudade desta destemperada e obrigatória serenata. Outros voltarão – voltaremos –às visitas, recuperaremos nossa agradável disciplina para esperar a madrugada com cheiro de mato, de terra úmida, que virá como uma nova Bela Adormecida esportiva e moderna. Ou talvez, certos de que nada mais nos impedirá de tresnoitar, iremos dormir mansamente –estranhos animais contraditórios – antes que os relógios dobrem a esquina da meia-noite.
Pela manhã, a casa de García Márquez em Cartagena estava fechada. Fica na rua Curato, embora no vasto muro exterior da mansão haja um letreiro com o nome da rua de onde caiu a letra U.
Um segurança que trabalha num prédio da região conta que também foi vigia na casa do Nobel. Descreve o interior. “O senhor entra e na frente tem um jardim onde estacionam os carros, essas coisas. Se o senhor vai para o andar de baixo, aquilo está cheio de quadros, de cultura e artes, essas coisas. Se o senhor entra à direita tem uma antessala. Aí tem uns móveis antigos e enfeites. Tá bom, coisas antigas. Se o senhor sobe, tem tipo um salão grande e uma mesa imensa, e tem cadeiras dos dois lados. É como um salão de conferências ou uma mesa para comer, mais ou menos. E na parte que o senhor vê daqui tem uma amendoeira e tem palmeiras cubanas, as famosas velas, aí fica a área da piscina, têm uma piscina interna. Já os quartos e coisas assim a gente não tem acesso a isso.”
O segurança recorda que García Márquez era muito carinhoso e que, quando chegava, antes que alguém lhe estendesse a mão ele se adiantava e apertava a mão aos outros. “Dava a mão assim como nós, do litoral, cumprimentamos, com a mão apertada.” Cinco carruagens passam ao lado da conversa, fazendo clac clac clac clac clac, que é mais ou menos o ruído que fazem os cavalos ao trotar.
Num restaurante chamado Bistro há um quadro grande com um retrato do escritor, mas atualmente ele está solto para algum reparo. Em uma mesa do restaurante, García Márquez é evocado por membro de sua Fundação Novo Jornalismo Ibero-Americano, criada em Cartagena há 19 anos. Carlos Serrano diz que na última vez que o viu ele usava uma camisa amarela muito bonita, de manga comprida. Era 2010, e o escritor foi fazer uma visita à sede da fundação. Serrano, um jornalista jovem, diz que ao redor dele estavam “todos embevecidos”. Um princípio estipulado por García Márquez para a fundação foi que a formação dos jornalistas deveria ocorrer oficinas descontraídas, como as reuniões de café na redação de um jornal. “Um ambiente de camaradagem”, diz Serrano, “agradável, alegre como a própria vida” – e seu patrono o olha do retrato desprendido da parede, que é a típica imagem de García Márquez saudando com o dedo médio erguido, mas com uma particularidade: nesta composição, o dedo médio está pintado de uma maneira tão estranha que parece um dedo enxertado numa mão colocada ao contrário.
Quando vinha do México passar temporadas aqui, a vida de García Márquez era uma vida entre amigos e zelosa da sua privacidade, diz o escritor Óscar Collazos, amigo dele e morador desta cidade. Conforme explica, Cartagena era “o pé na terra com a Colômbia” desse artista desarraigado, que nasceu em um povoado litorâneo, passou por Bogotá, esteve alguns anos em Barcelona e Paris e residiu durante décadas na Cidade do México, viajando para cima e para baixo, mas que, em meio a tudo isto, arraigou-se mesmo foi no território imaginário dos seus romances. Em geral, ele e sua esposa passavam o tempo em casa ou na casa de seus amigos. Gabriel García Márquez era tão famoso e tão adorado que tornava-se impossível para ele sair para passear com frequência por Cartagena, a bela. Mas de vez em quando ele saía. Já nos últimos anos, conta Collazos diante de uma xícara de café, ele e sua esposa tentaram um dia dar uma volta pela cidade. As pessoas começaram a segui-lo para dar um oi, para tocá-lo, para vê-lo, para lhe pedir um autógrafo ou para lhe fazer todas essas coisas ao mesmo tempo. O romancista olhou para Mercedes e lhe fez uma pergunta vinda de uma página difusa da sua memória.
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