“A minha métrica do sucesso não é a reeleição”
Ao fim do primeiro ano de mandato, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, defende suas medidas polêmicas e credita à luta de classes as derrotas sofridas na administração
São dez e meia da manhã do último dia de 2013 quando o prefeito petista Fernando Haddad, 50, recebe a reportagem do El PAÍS na sede da Prefeitura de São Paulo, no centro da cidade. O semblante de esgotamento e o par de tênis nos pés permitiriam confundi-lo, facilmente, com um maratonista da São Silvestre, corrida que naquele momento passava pela porta da administração municipal. Mas o aparente cansaço do administrador da maior cidade da América Latina tem outras causas. É o resultado de um ano intenso, permeado por derrotas políticas que devem trazer um impacto significativo nas finanças e nos investimentos de 2014.
Em junho, uma série de protestos contra o aumento de 20 centavos na tarifa de transporte público ganhou força depois de uma violenta repressão policial. Sob pressão popular, Haddad e o governador Geraldo Alckmin (que gerencia o sistema de trens e metrô) anunciaram a volta da tarifa para os 3 reais.
Mas os protestos continuaram e impactaram a imagem de Haddad: o número de pessoas que consideram seu governo bom ou ótimo caiu de 34%, no início de junho, para 18%, em novembro, segundo pesquisa Datafolha. E quando a situação parecia melhorar, veio um novo golpe: ao tentar reajustar o IPTU, imposto que incide sobre os imóveis, Haddad foi barrado pela Justiça após uma ação comandada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que tem como presidente Paulo Skaf, provável candidato pelo PMDB nas eleições para o Governo de São Paulo neste ano.
O resultado dos dois golpes foi um congelamento de ao menos 800 milhões de reais que seriam usados pela prefeitura para seus investimentos de 2014. Um impacto definido por um Haddad especialista na doutrina de Karl Marx como a vitória da Casa Grande perante a Senzala, uma referência ao livro do sociólogo Gilberto Freyre, que analisa a formação do Brasil. “Para aqueles que acreditam que o nosso problema de bem estar social é falta de investimento público, [a derrota do IPTU] trará consequências."
Pergunta: Como é ser prefeito da maior cidade da América Latina?
Resposta: Uma experiência desafiadora. Mas há também a sensação de que você consegue dar resposta aos problemas, desde que você tenha alguma determinação para mudar a realidade da cidade. Em geral, os prefeitos que deixam uma marca na sua cidade foram os que tomaram as providências que todo mundo sabia que precisavam ser tomadas, mas eram postergadas em função de circunstâncias conjunturais. A questão da mobilidade é clássica no mundo inteiro. Todo mundo sabe que deve priorizar o transporte público, mas tomar a decisão de priorizá-lo é difícil porque incomoda aqueles que estão comodamente utilizando o transporte individual. Já tínhamos anunciado na campanha que faríamos, mas impulsionados pelas manifestações de junho, fizemos em seis meses o que faríamos em quatro anos [com o aumento das faixas exclusivas de ônibus], o que resultou em um incremento na velocidade do ônibus, superior a verificada em Nova York e Paris, que tomaram a mesma decisão.
P: Mas as pesquisas mostram que pessoas não deixaram o carro em casa, que o número dos que usam ônibus não aumentou muito.
R: Mas deixou de cair. Vinha caindo consideravelmente. Essa mudança não se faz em meses.
P: Há uma forma de estimular as pessoas a deixarem o carro?
R: É a perseverança. O trânsito em São Paulo piorou menos em 2013 do que em 2012, quando não se investiu um centavo em transporte público. O trânsito aumentou 11% de 2011 para 2012, sem uma faixa, sem um corredor. E de 2012 para 2013, 7%. Óbvio que é uma mudança de cultura, talvez geracional. No meu tempo, o presente de quem entrava na faculdade era um carro. Outro dia, meu filho me disse que pensava em se desfazer do carro, em função dos custos associados. Paga-se muito mais de seguro de carro em São Paulo do que de IPTU.
P: Esse é um valor percebido por um grupo mais crítico. A população, em geral, ainda não vê assim.
R: Mas os 70% que usam transporte público entendem.
P: E isso não deveria se refletir em apoio ao seu nome?
R: Vamos dissociar essas duas coisas. O apoio à medida [implementação das faixas] foi medido por dois institutos de pesquisa, e está na casa dos 90%. Uma coisa é aprovar a medida, outra coisa é aprovar o político. Estamos num ano muito atípico do ponto de vista de aprovação aos governantes, de maneira geral. A aprovação da nossa reforma educacional é na casa dos 90%. De mobilidade, 90%. Se perguntarem sobre as medidas para combate à corrupção, certamente vai ser de 100%. E isso tudo pode não se refletir em apoio político.
P: Isso é uma sina em São Paulo, onde poucos prefeitos reelegeram sucessores?
R: É um contexto geral de mau humor em relação à política, que é mais grave em São Paulo. Porque a cidade vive uma crise financeira há 20 anos. São Paulo está investindo menos da metade das capitais do Sudeste [Belo Horizonte, por exemplo, investe três vezes mais]. Não tem como. Tem uma hora que a política tem que fazer a concessão à matemática.
Ninguém que é pessimista pode entrar na política. A política já é tão difícil sendo o que ela é. O pessimista tem de fazer outra coisa… Tem que ser jornalista
P: O problema é a dívida de 56 bilhões de reais, que não dá margem para investimento?
R: Não é só isso. Tem os precatórios. O Supremo declarou inconstitucional o parcelamento dos precatórios, isso já está se refletindo nas contas municipais. Tem um problema novo, o do congelamento da tarifa de ônibus. E um mais novo ainda, que é a suspensão de uma prática comum a todos os governantes que me foi sonegada, que é a atualização da planta de valores do IPTU.
P: E por que o senhor acha que, agora, pela primeira vez, foi negada a atualização do IPTU?
R: Eu não sei.
P: É uma questão política?
R: Não sei. Eu acompanho finanças públicas desde criancinha, vamos dizer. Eu nunca vi uma decisão dessa, de negar uma prefeitura de atualizar a base de cálculo.
P: Está claro, há um problema...
R: Não há um problema. Havia um, agora são quatro (risos).
P: O seu cenário é muito pessimista pelo jeito. Quais são as soluções possíveis? Reajuste da tarifa de ônibus em junho?
R: Antes das manifestações de junho, eu já havia dado uma declaração de que eu era a favor da municipalização da CIDE [Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico], um tributo que incide sobre a gasolina, para baratear o preço da mobilidade em São Paulo. No mundo inteiro discute-se isso. Em Bogotá, por exemplo, tem uma espécie de CIDE municipal. O prefeito tributa a gasolina e subsidia o transporte público. Eu entendo que 2014 é um bom ano para discutir esse tema, em termos nacionais.
P: Mas em um ano eleitoral?
R: Justamente. É em ano eleitoral que se discute esse tipo de coisa. Se o Brasil quer o barateamento da tarifa, então temos que discutir a fonte desse barateamento. Por que você vai prejudicar outros setores do governo para baratear o transporte? Saúde, educação, moradia? Essa pergunta será feita aos candidatos. Ninguém que é pessimista pode entrar na política. A política já é tão difícil sendo o que ela é. O pessimista tem de fazer outra coisa… Tem que ser jornalista (risos).
P: Mas a prefeitura teve que congelar boa parte da verba por mais um ano. Como implementar os projetos?
R: A suspensão da tarifa e a falta de correção da tabela do IPTU implicam na redução do investimento na cidade. Mal ou bem, essas decisões foram tomadas. Foi o resultado do campo de forças que atuou sobre a cidade. Uma cidade que já investe metade do que as demais capitais do Sudeste investem vai ter mais restrições de investimentos. Esta cidade que pede mais creche, mais qualidade do transporte, mais leitos hospitalares, que se façam mais cirurgias eletivas, precisa encontrar um padrão de financiamento. Isso passa por muitas ações, pela repactuação da dívida do município com a União, que ao contrário do que se vem retratando, está bem encaminhada.
P: Mas existe um consenso no mundo econômico de que repactuar a dívida da prefeitura com a União pode gerar um endividamento e prejudicar o ajuste fiscal do país.
R: Discordo desse entendimento. Primeiro, porque não tem impacto fiscal no curto prazo. Segundo, nós estamos buscando um reequilíbrio do contrato. Não é farra fiscal. A União não pode enriquecer às custas dos entes cujas dívidas foram renegociadas. Não posso pagar uma dívida de 17% [de juros] para a União, enquanto ela rola as dívidas dela a 10%. Numa Federação, um ente não pode lucrar às custas de outro. Acho incrível um economista sério defender um contrato totalmente desequilibrado como este. O que estão dizendo é o seguinte: já que você assinou um contrato infeliz, paciência. Você vai colaborar com o esforço fiscal da nação porque você fez um mau negócio. Mas esse negócio foi feito entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-prefeito Celso Pitta (nos anos 2000). É uma excrescência do ponto de vista jurídico.
P: O senhor acredita, então, que isso pode mudar neste ano?
R: Eu confio na regra de bom senso. Não há como prevalecer o entendimento de que um contrato totalmente desequilibrado deva ser mantido porque um grupo de fundamentalistas entende que isso coloca em risco a estabilidade financeira do país. Estamos falando de um município!
P: Mas que é o maior município do país...
R: O que é pouquíssimo perto da União.
P: Mas a mudança do indexador afetaria outros municípios e Estados.
R: Mas é justo que a mudança do indexador ocorra. Não é razoável imaginar que Alagoas, por exemplo, um dos Estados com os piores indicadores sociais, talvez do mundo, subsidie a União. Esquece São Paulo. Para Alagoas é justo?
P: Mas, de qualquer forma, ainda estamos falando de uma expectativa de mudança. E, de concreto, ainda não tem verba.
R: Quando uma bola está na marca do pênalti, tenho uma boa expectativa de que vai sair o gol.
P: Tem o Roberto Baggio para mostrar que ela sempre pode ir para fora....
R: Óbvio que pode. Mas com uma bola na marca do pênalti, uma expectativa de gol não é otimismo exacerbado.
São Paulo não é uma cidade conservadora, é uma cidade onde atuam fortemente forças conservadoras. A cidade é melhor do que parece. Ela quer aflorar, mas não deixam. É o cabresto da Casa Grande
P: Mas o senhor conta com mais verbas da União? Ela já aumentou em 3.000% para os investimentos na saúde na sua gestão...
R: São Paulo se mantinha isolado. Nós estamos aderindo a todos os programas federais. Na área da saúde, educação, cultura, mobilidade, do Minha Casa, Minha Vida. Agora, óbvio que nós temos constrangimentos. Quando o programa federal exige contrapartida, o aumento da arrecadação própria do município é essencial para honrar essa contrapartida. Por isso a nossa preocupação com o IPTU é tão grande.
P: Como assim?
R: Porque ao contrário do que a Fiesp alardeou, nós não vamos perder só 800 milhões de reais. Aliás, 800 milhões só não é dinheiro para a Fiesp. Para São Paulo é muito dinheiro. Nós não vamos perder só os 800 milhões, vamos deixar também de fazer obras que exigem a contrapartida. Por exemplo: a União paga a construção de creche para os municípios. Só que, para isso, eu preciso de terreno. Mas como não tenho terreno público em São Paulo, eu preciso desapropriar. E se eu não tenho o dinheiro próprio para a desapropriação, o dinheiro federal não vem. O principal problema são os casos em que preciso desapropriar, como o Minha Casa, Minha Vida, e os corredores de ônibus.
P: Houve bairros com aumento de 29%, como no caso da Vila Mariana (classe média alta), e redução de 10% em bairros como Guaianases (de baixa renda). Não se poderia ter mantido esses bairros sem desconto, para que outros não tivessem tanto reajuste?
R: A planta genérica de valores não é uma peça política. É uma peça técnica, elaborada na secretaria de Finanças. Uma lei municipal exige que no primeiro ano de mandato todo prefeito atualize. Eu estava cumprindo a lei. Eu estava fazendo o que todos os prefeitos fizeram no seu primeiro ano. É justo atualizar a base de cálculo do tributo. Se uma jurisprudência como essa se firma, o que eu não acredito, vai ter repercussões em todos os municípios.
P: Não faltou diálogo, sabendo ainda que o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, pode se candidatar a governador em 2014?
R: Não faltou diálogo, sobrou oportunismo. É minha opinião sincera.
P: No mundo da política não existem bondades, o jogo não é fraternal...
R: Debate sobre tributo no Brasil sempre se ganha a posteriori, a priori é muito difícil ganhar. Quando prometeram que os preços das mercadorias iam cair com o final da CPMF (tributo criado para financiar a saúde, extinto posteriormente), lembra? Nós estamos esperando até agora. Os empresários embolsaram lucros maiores e a saúde pública foi prejudicada.
P: Já que estamos falando de lucro... O senhor deu uma declaração que gerou polêmica recentemente. Disse que a Casa Grande, representada pela Fiesp, venceu a Senzala, que é a população pobre de São Paulo. O senhor acha que há uma luta de classes?
R: Veja bem, nós estamos num dos países mais desiguais do mundo. Não sei por que lembrar isso ofende alguém. E combater as desigualdades é equilibrar a contribuição que cada um dá para a sociedade se emancipar das mazelas materiais que sofre. Não vejo ofensa nisso.
P: É difícil ter uma visão mais marxista numa sociedade tão conservadora quanto São Paulo?
R: Não estou falando de marxismo aqui. Estou falando de Estado de bem-estar social. Como é que São Paulo admite conviver com a miséria que ainda existe aqui, a cinco quilômetros do centro? Como se admite conviver com tanta miséria ainda?
P: Mas também existe um paulistano que rejeita a miséria, que quer uma cidade mais humana. Como o senhor percebe isso?
R: Sempre fui da opinião que São Paulo não é uma cidade conservadora, é uma cidade onde atuam fortemente forças conservadoras. A cidade é melhor do que parece. Agora, muitas vezes esse desejo, essa vontade de mudança, fica subordinada aos donos que impedem essas forças de se manifestarem mais livremente. Por isso que é uma cidade tensa. Ela quer aflorar, mas não deixam. É o cabresto da Casa Grande. (risos).
COMBATE À CORRUPÇÃO
P: Existe uma ação da prefeitura, com apoio consensual, que é a Controladoria Municipal. O senhor falou em trabalhar leis internacionais para punir as construtoras, envolvidas na máfia dos fiscais. Como esse assunto foi encaminhado? No Brasil, não se pune o corruptor.
R: Ainda há muitas distorções que estão sendo corrigidas. Entra em vigor em janeiro uma lei que permite a multa administrativa severa dos corruptores. É uma lei nacional, que pretendemos aplicá-la exemplarmente em São Paulo. Há um projeto de lei desde 2004 no Congresso Nacional, encaminhado pelo ex-presidente Lula, que criminaliza o enriquecimento ilícito. Hoje isso não é crime. Posso te garantir uma coisa: se no Brasil for feito o trabalho que a controladoria do município fez, de cruzamento de dados patrimoniais, com declaração de Imposto de Renda, uma parcela da Casa Grande seria encarcerada. Pode ter certeza.
P: O combate à corrupção resvalou no seu governo, com o nome do Antônio Donato (secretário de Governo que pediu afastamento ao ser apontado como receptor de propina no esquema de fiscais da prefeitura com construtoras). Como o senhor vê isso?
R: Só três pessoas podiam prejudicar essa investigação até a sua conclusão exitosa: eu, o controlador e o Donato. Éramos as únicas três pessoas da prefeitura que, por dever de ofício, tinham que acompanhar, desde março, o passo a passo das ações conduzidas. Teve uma determinada circunstância, num determinado dia, que foi crucial. O controlador chegou para mim e para o Donato e falou: ‘olha, tá mapeado o problema.’ Expôs todo o problema, que veio a ser conhecido seis meses depois. Disse: ‘nós temos duas condutas a tomar, ambas com amparo legal. Um processo administrativo disciplinar por enriquecimento ilícito em que esses servidores serão demitidos. E outro muito mais delicado: levar o problema para o Ministério Público, tentar uma ação judicial que abra uma investigação com autorização legal, com quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal e todas as consequências inerentes a essa decisão’. Qual foi a posição minha e a do Donato? Vamos pelo caminho mais difícil, mas que vai resultar na verdade, em saber como essas pessoas acumularam até aqui 80 milhões de reais em patrimônio pessoal.
P: E por que o senhor acha que o nome dele foi envolvido?
R: Ah, aí tem que perguntar para quem envolveu... Eu estou dando um testemunho de quem presenciou a cena. A decisão foi tomada ali. Naquele minuto. Ninguém ali piscou. Muita gente não faria isso.
P: Foi uma perseguição ao senhor?
R: Não, não lido com esse conceito. Eu só sou uma pessoa, até pela minha formação, que acredita que você explicando os dilemas que o administrador público vive, isso ajuda a empurrar para a direção correta a cidade. Possivelmente alguém consideraria melhor ir no caminho do menor risco para a administração. Nós optamos por um outro caminho. Por um jeito que é mais pedagógico, mais transparente e que envolve mais riscos.
P: Quer dizer, o grande mérito da Controladoria foi esse cruzamento de dados...
R: Em 90 dias desbaratamos uma quadrilha que atuava havia oito anos! Agora, veja que curioso, a mentalidade é tão distorcida no nosso país, que boa parte da imprensa local começou a me criticar por não ter feito os cálculos políticos da minha decisão. Como se a ética tivesse de ser subordinada ao cálculo político. E muitos prefeitos, que estavam interessados em criar as suas controladorias, recuaram diante da reação da imprensa à minha suposta ingenuidade. As distorções morais estão em todo lugar.
P: É verdade que o ex-presidente Lula chamou o senhor para conversar sobre o desgaste dessa ação na aliança com o PSD, do ex-prefeito Gilberto Kassab, que é importante para a reeleição da Dilma?
R: Nunca. Tem reuniões das quais eu participei que eu fico sabendo pela imprensa. (risos).
PROTESTOS
P: E na época dos protestos? Houve uma crítica de que a prefeitura demorou para atuar. Se disse que o ex-presidente Lula estava insatisfeito com a sua postura. É verdade?
R: Sobre esse assunto eu conversei com o presidente Lula. E ele sempre entendeu o problema como um problema que não era local. Ele foi um dos primeiros a fazer essa afirmação: ‘não é a tarifa’.
P: E hoje como o senhor avalia o que aconteceu em 2013 no país? Eu queria a resposta do cientista político, não do prefeito.
R: Eu acho que o estopim pode ter sido a tarifa. Deixa eu fazer algumas considerações, já que você está perguntando para um cientista político você tem que me dar tempo (risos). A minha campanha eleitoral se baseou numa tese que se provou vencedora. Mas que explica muito, na minha opinião, as manifestações de junho. Eu dizia que a vida do brasileiro tinha melhorado da porta de casa para dentro. Mas não tinha melhorado da porta de casa para fora. Quis dizer que a vida do trabalhador: renda, acesso à crédito, acesso ao consumo, à educação, à saúde... tudo tinha melhorado, da porta para dentro. Mas que os serviços públicos, da porta para fora, não tinham acompanhado esse ritmo de mudança. A tarefa nossa, portanto, seria essa. Tínhamos que melhorar para o usuário do SUS [Sistema Único de Saúde], para o usuário de escola pública. Acho que junho é um pouco o resultado disso. Com um ingrediente, na minha opinião, que explica muito a forma que a coisa assumiu: a violência policial.
Eu entendo que do ponto de vista da segurança pública existe ainda um componente mal resolvido de interface com a política, de se criminalizar protesto, por exemplo. Isso é uma coisa muito comum em uma ditadura (...) houve uma reação muito forte da sociedade em relação a esse resquício do período autoritário.
P: A violência foi o elemento catalizador?
R: Eu acho que ali houve uma resposta da juventude, que disse: ‘nós não vamos aceitar um retrocesso democrático no país e se formos para a rua para nos manifestar é um direito nosso’. Acho que aquela quinta-feira, 13 de junho, é um turning point. Existia um movimento [pela redução da tarifa] que não era novo, que não tinha grande expressão e, de repente, uma violência muito grande resultou numa situação inédita.
P: A Polícia Militar foi inábil?
R: Eu entendo que o Estado ainda não estava preparado do ponto de vista da sua organização, da formação democrática que as forças de segurança têm que ter. Nós saímos da ditadura militar, o Brasil está avançando enormemente na democracia, é uma das democracias mais vibrantes do mundo. Mas eu entendo que do ponto de vista da segurança pública existe ainda um componente mal resolvido de interface com a política, de se criminalizar protesto, por exemplo. Isso é uma coisa muito comum em uma ditadura, onde se criminaliza os opositores do regime. Numa democracia não se aceita. O que me pareceu é que houve uma reação muito forte da sociedade em relação a esse resquício do período autoritário.
P: O senhor acha que a polícia deve ser desmilitarizada?
R: Eu não estudei esse assunto. A tendência mundial é a da desmilitarização. Isso é uma tendência no mundo e quanto mais evoluído o país, mais essa é a regra.
P: Agora, olhando quase seis meses depois, teria alguma coisa que o senhor teria feito diferente em relação às manifestações? A prefeitura demorou para agir?
R: Demorou-se muito tempo? Acho que não. Na quinta-feira, 13 de junho, houve aquele evento, aquela enorme repressão e na quarta-feira foi feito o anúncio.
P: Mas as manifestações já tinham sido reprimidas com violência outras vezes antes, tudo vinha crescendo...
R: Antes daquela quinta-feira, as vítimas retratadas pela própria imprensa estavam mais do lado da polícia. A foto da quarta-feira, 12 de junho, em todos os jornais, é a de um policial sangrando e não a de um manifestante ferido. Não estava claro o que de fato estava acontecendo. Na quinta-feira muda tudo. O que eu vi depois de quinta é que o debate ali estava completamente interditado. Já não era possível debater o assunto. Ainda tentamos. Mas ali já não havia mais nenhum espaço para o debate.
P: Uma das soluções que vieram foi a Comissão Parlamentar de Inquérito do ônibus (quer seria feita na Câmara Municipal, pelos vereadores, para abrir as planilhas de gastos do transporte público). Isso andou muito pouco.
R: Eu não vejo condições de um aprofundamento desse tipo de debate numa CPI. CPI em geral é muito boa para apurar uma denúncia. Um fato concreto. Uma auditoria, na minha opinião, só uma auditoria internacional licitada como nós vamos fazer. Estamos no meio do processo de licitação. Como a sociedade está demandando mais transparência, resolvi que não vou licitar o sistema, sem antes auditar.
P: Vai constar no critério de preferências mais linhas oferecidas?
R: Primeiro lugar, na minha opinião, é o custo disso tudo. Quando as pessoas falam: ‘corta do empresário’, vamos ver. No primeiro ano da minha primeira administração reduzimos o desembolso em 500 milhões de reais em 2013. A mesma prefeitura está atuando na renegociação dos contratos com os fornecedores, renegociação da dívida com a União, negociação dos precatórios, planta genérica de valores... Fazemos um grande esforço de saneamento para recolocar São Paulo na liderança do investimento público per capita do país.
P: É possível ter tarifa zero no transporte público?
R: Vamos fazer uma pergunta diferente: é possível aumentar o subsídio à tarifa até o ponto de chegar a 100%? A minha opinião é que sim, se tiver uma fonte de financiamento.
P: Que seria...
R: A municipalização da CIDE. Se os prefeitos forem autorizados a tributar a gasolina para subsidiar a tarifa, você poderia avançar no subsídio e diminuir o preço da tarifa no bolso do trabalhador.
P: Vai ter aumento de ônibus em 2014?
R: Não está planejado.
P: Isso é não?
R: Isso é não.
POLÍTICA
P: Estamos falando de arrumar a casa e, talvez, colher os frutos dessa arrumação muito tempo depois de quatro anos. Todas essas questões demoram um tempo até que se tenha verba para fazer o que realmente aparece aos olhos públicos. Não é um risco político?
Tem que ter muita paciência para suportar esse processo. Trabalhar calado, aguentando e acreditar que tem uma coisa que vai desabrochar.
R: É um risco político que eu decidi assumir, conscientemente. Eu vou te dar um exemplo da minha passagem pelo Ministério da Educação: seguramente, nós fizemos a maior reforma educacional da história. Mas nós ficamos dois anos discutindo roubo de uma prova do Enem, um livro que supostamente ensinava o brasileiro a falar errado... Ou seja: do que nós estamos falando? Você promove uma das maiores reformas, inclusive reconhecida pela Unesco, pela Unicef. E nós ficamos presos a esses acontecimentos que a imprensa julgou como os mais relevantes a serem discutidos. É difícil a comunicação.
P: No longo prazo esses esforços podem ser percebidos? O PT tem tempo de esperar esse longo prazo em São Paulo?
R: Veja bem. São Paulo precisa ser bem sucedida pela métrica que me interessa. A métrica que me interessa não é a reeleição. Você pode ser mal sucedido e se reeleger. Conheço vários prefeitos ruins que foram reeleitos. A minha métrica do sucesso não é a reeleição. É um projeto para a cidade. A cidade tem um projeto hoje? Não tem. Se essa cidade em 2016 tiver um projeto... E quando eu digo projeto não é o prefeito ter um projeto. É a cidade ter um projeto. Para mim, essa é a vitória da gestão. Para mim, o que significa mudar São Paulo é uma combinação virtuosa entre o projeto e o tempo. É um risco muito grande? É um risco muito grande.
P: Mas adianta ter um projeto e em 2016 não conseguir a reeleição e entrar um outro prefeito que vai assumir outro projeto?
R: Foi o que aconteceu com a Marta [Suplicy]. Por que a Marta, à maneira dela, vinha desenvolvendo uma visão de cidade que estava se impondo e que é diferente da São Paulo que nós conhecemos hoje. Na minha opinião, a cidade seria outra. Até porque eu participei da gestão dela e vi que estava se constituindo uma coisa nova em São Paulo. E ela perdeu.
P: E o senhor não teme isso?
R: Temo. Mas qual a alternativa que eu tenho? Maquiar? Não sei!
P: A Marta foi muito bem aceita na periferia e rejeitada nos bairros mais ricos. Ela também teve um embate com a classe média, onde está grande parte do conservadorismo. Não existe uma estratégia para trabalhar a conquista da classe média?
R: É difícil você convencer alguém de alguma coisa no primeiro ano de governo. Porque as pessoas não conseguem enxergar. É muito difícil, inclusive, comunicar coisas que estão sendo gestadas ainda. Então, tem que ter muita paciência para suportar esse processo. Trabalhar calado, aguentando e acreditar que tem uma coisa que vai desabrochar. Exige um exercício incrível.
P: A gente vê que a aposta do Kassab para a reeleição foi bem simples. Ele investiu na Cidade Limpa, investiu na zeladoria...
Não tem ninguém que se pareça mais com um tucano do que eu. Branco, filho de imigrante, bem sucedido academicamente, três diplomas. E o que quer dizer isso? Na hora em que os interesses estão em jogo, é de que lado você fica que importa
R: A do [José] Serra foi mais simples ainda! Se desincompatibilizou depois de um ano e se candidatou a governador... (risos)
P: Não seria mais fácil essa aposta mais simples?
R: É mais fácil! Mas, mutatis mutandis, você está me fazendo o tipo de pergunta que me causava uma certa indignação três meses atrás quando me perguntavam: ‘mas porque você está combatendo a corrupção desse jeito. Você não está percebendo que isso está trazendo prejuízo para o teu governo?’. É o mesmo tipo de cálculo, entendeu. Mas é o jeito que eu sei fazer.
P: Mas o senhor foi uma aposta do PT para tentar se renovar, trazer quadros novos, já que há preconceito da classe mais conservadora paulista com a questão sindical, trabalhista, historicamente ligada ao partido. O senhor é um intelectual, professor da USP. O ministro da Saúde Alexandre Padilha, que deve ser o candidato ao Governo de São Paulo neste ano, vem com o mesmo perfil...
R: Não tem ninguém que se pareça mais com um tucano do que eu. Branco, filho de imigrante, bem sucedido academicamente, três diplomas. E o que quer dizer isso? Na hora em que os interesses estão em jogo, é de que lado você fica que importa. Quer mais do que a Marta? Loira, de olhos azuis, quatrocentona, poliglota, estudou na França, nos EUA. O currículo da Marta dá de dez no de qualquer tucano. E daí? Mas ela fez Bilhete Único, CEU na periferia, corredor de ônibus.
P: Foi um ano intenso. O senhor está cansado?
R: Sei lá. Oscila muito tua maneira de ver. Não sei. Já vivi anos difíceis na vida. 2005 foi um ano muito difícil na minha vida, quando assumi o Ministério da Educação. Tive anos na vida privada muito difíceis.
P: O senhor se arrepende?
R: Não. É um privilégio viver essa experiência.
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