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OBITUÁRIO

Morre Yusef Lateef, gigante amável do jazz

Ele explorou dimensões insólitas, que qualificava como 'música autofisiopsíquica’

Yusef Lateef, músico de jazz, em 1999. / LEBRECHT (CORDON)
Yusef Lateef, músico de jazz, em 1999. / LEBRECHT (CORDON)

“Eu não toco jazz, mas sim, "música autofisiopsíquica” (link em espanhol). Yusef Abdul Lateef, nascido como William Emanuel Huddleston (e rebatizado como William Evans), em 1920 em Chattanooga, Tennessee, foi vencido pelo câncer aos 93 anos. Descobrimos tarde este “gigante amável” do jazz contemporâneo; o homem que pôde ser John Coltrane no local de John Coltrane: “Ele e eu éramos amigos e às vezes tocávamos juntos; era um ser humano fora do comum, uma pessoa extremamente inteligente e perceptiva”. Mas Emanuel Huddleston preferiu mudar o caminho e viver à margem do mainstream jazzístico, entregando a sua música autofisiopsíquica “que brota do ser espiritual, físico e emocional”.

Em seus primeiros anos, conhecido então como Bill Evans, criou laços com os jazzmen de Detroit —Milt Jackson, Paul Chambers, Kenny Burrell, Elvin Jones…—, cidade onde havia ido quando criança junto a sua família: “Minha música então era o bebop, que era o que todo mundo tocava”. O tempo terminaria fazendo de Lateef um pioneiro do que hoje se conhece como “músicas do mundo”: “Era o ano 1955 e acabava de gravar meu primeiro disco com Savoy. De repente, me dei conta de que, se quisesse continuar, deveria encontrar uma estética mais pessoal. Naquele período trabalhava na Chrysler e tinha um colega de origem síria que me falou do rabab, um instrumento com 5.000 anos de história que tocava o Rey David. Acabei formando um grupo junto a Curtis Fuller e Louis Hayes, que misturava o rabab com o sax tenor.” Como consequência disso, Lateef deixou de ser um saxofonista e flautista para se converter em um “multiinstrumentista”, um dos primeiros na história do jazz. Seu arsenal de instrumentos incluía o shenai, o shofar, o arghul e o koto, além do oboé e o fagote: “Esses instrumentos me ajudaram a encontrar minha própria voz dentro da música”.

Em 1961, ele perderia a sua visão de um jazz “multicultural” com Eastern Sounds, sucesso de vendas graças à versão em swing do tema de amor do filme Spártacus, incluída no disco. Cannonball Adderley o chamou, no ano seguinte, para seu quinteto. Foi o canto do cisne do multisaxofonista como músico de jazz (relativamente) homologável. Durante os anos que se seguiram, Lateef permaneceria sumido no mais insondável marasmo criativo; sua música viajou do blues ao gospel a uma sorte de espiritualidade, dificilmente catalogável. Até que lhe perdemos de vista.

Sua atuação, junto a Eternal Winds, no Festival do Mar do Norte de Haia, em 1992, marcou um antes e um depois em sua carreira. O regresso do já veterano instrumentista aos palcos europeus depois de décadas de ausência se viu correspondido por uma afluência em massa de fãs ansiosos por escutar a uma das últimas lendas vivas do jazz, seguida pela deserção em massa dos ali presentes enquanto o venerável intérprete mergulhava nas águas de uma música complexa e densa até o impenetrável… Lateef mostrava a autêntica cara do jazzman como um criador incorruptível e alheio a qualquer outro interesse que não fosse sua própria obra. Para o bis, o número de sobreviventes talvez não superasse a vinte. Yusef Lateef conseguia o que muito poucos conseguem: esvaziar por completo uma plateia.

Sua colaboração com os irmãos Lionel e Stéphane Belmondo, saxofonista e trompetista, respectivamente, o trouxe de volta à Europa e a uma música mais amável, no bom sentido da palavra: “Um dia me chamaram a Nova York para gravar um disco e eu topei. Gostei desde o primeiro momento”. Romancista, ensaísta, filósofo, doutor em música, vencedor de um prêmio Grammy em 1987 por sua Pequeña Sinfonía, foi nomeado membro honorário da Fundação Ben Webster, com sede em Copenhague, no dia 10 de julho de 2009. O protocolar ato de entrega da nomeação tomou uma aparência inesperada, quando o homenageado tomou o microfone para lembrar ao velho amigo em sua incessante e infrutífera busca pela felicidade, que lhe trouxe até terras escandinavas. A voz quebradiça de Lateef se rompeu em mil pedaços no momento de evocar o encontro com seu compatriota no legendário café Jazzhus Montmartre da capital dinamarquesa. Reapareceria nessa mesma tarde sobre a cena do Pabellon de Cristal do parque Tívoli para oferecer um concerto carregado de emoção e significado; desta vez, ninguém se moveu de seu assento.

Lateef seguia a religião islâmica desde 1948: “Sigo os mandamentos do Alcorão, mas não sou um fanático. Antes de mais nada, creio na coexistência pacífica dos povos”.

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