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O papa Francisco: “A economia da exclusão mata”

Jorge Mario Bergoglio pede para os políticos lutarem contra “a tirania” do atual sistema econômico e defende reforma da Igreja

O papa Francisco na praça de São Pedro.
O papa Francisco na praça de São Pedro.CLAUDIO PERI (EFE)

Durante 142 páginas, o papa Francisco deixa claro que a Igreja atual, sua Igreja, não é de seu gosto, mas também não gosta do mundo que a rodeia. Uma Igreja, segundo Jorge Mario Bergoglio, cheia de invejas, ciúmes e guerras, preocupada em excesso consigo mesma, e um mundo onde triunfa “uma economia que mata” através da exclusão e da desigualdade. Por isso, o papa fixou o horizonte de seu papado sobre duas guias paralelas. Uma reforma da Igreja, que inclua uma conversão do próprio papado, e um apelo urgente e sem descanso aos políticos para que lutem contra “a tirania” do atual sistema econômico: “Não compartilhar com os pobres os próprios bens é roubá-los e tirar suas vidas. Não são nossos os bens que temos, mas eles.”

Durante as páginas da exortação apostólica “Evangelii Gaudium”, na qual o papa Francisco recolhe e interpreta os trabalhos do concílio (reunião de bispos) dedicado a “A nova evangelização para a transmissão da fé” celebrado de 7 a 28 de outubro de 2012, Bergoglio desenha de forma muito nítida o horizonte de seu pontificado: “É necessária uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão.” O papa anunciou uma “reforma das estruturas” da Igreja e “uma conversão do papado” para que seja “mais fiel ao sentido que Jesus Cristo”. Há uma frase, muito do estilo Bergoglio, que resume bem o espírito do tempo que está por vir: “Prefiro uma Igreja ferida e manchada por sair à rua que uma Igreja preocupada por ser o centro e que termine enclausurada em um emaranhado de obsessões e procedimentos.”

O papa deixa claro que a Igreja atual não é a que gostaria de ter. E não poupa exemplos. Refere-se inclusive às invejas e aos ciúmes que existem entre as diferentes comunidades –“quantas guerras! A quem vamos a evangelizar com estes comportamentos?”—e chega a denunciar “uma tremenda corrupção com aparência de bem. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob uma roupagem espiritual ou pastoral!”.

Preceitos da Igreja, poucos e antiquados: “Há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes em outras épocas, mas que já não têm a mesma força educativa como causas de vida. São Tomás de Aquino destacava que os preceitos dados por Cristo e os Apóstolos ao Povo de Deus 'são pouquíssimos'. Citando a Santo Augustinho, advertia que os preceitos acrescentados pela Igreja posteriormente devem ser exigidos com moderação 'para não fazer pesada a vida dos fiéis' e converter nossa religião em uma escravatura, quando 'a misericórdia de Deus quis que fosse livre'. Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma tremenda atualidade. Deveria ser um dos critérios a considerar na hora de pensar em uma reforma da Igreja e de seu sermão que permita realmente chegar a tudo. (…) Além disso, nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio na interpretação da realidade social ou na proposta de soluções para os problemas contemporâneos”.

Fez um apelo urgente aos políticos: “uma reforma financeira que não ignore a ética pediria uma mudança de atitude enérgica por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e visão de futuro, sem ignorar, evidentemente, a especificidade da cada contexto. O dinheiro deve servir e não governar! O papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de recordar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Vos exorto à solidariedade desinteressada e a uma volta da economia e das finanças a uma ética em favor do ser humano”.

Não à economia da exclusão: “Bem como o mandamento de 'não matar' põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, hoje temos que dizer 'não a uma economia da exclusão e da desigualdade'. Essa economia mata. Não pode ser que não seja notícia um idoso sem teto morre de frio e que uma queda de dois pontos na bolsa seja. Isso é exclusão. Não pode ser tolerado mais que se desperdice comida quando há gente que passa fome. Isso é desigualdade. Hoje tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso come o mais fraco. Como consequência desta situação, grandes massas da população se veem excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem horizontes e sem saída. Considera-se o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora”.

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A pobreza: “A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar. Os planos assistenciais, que atendem certas urgências, só deveriam ser pensados como respostas passageiras. Enquanto não se resolvam radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade, não se resolverão os problemas do mundo e nenhum problema. A desigualdade é a raiz dos males sociais”.

Uma mensagem a políticos e investidores: “Enquanto os ganhos de uns poucos crescem exponencialmente, os da maioria ficam cada vez mais longe do bem-estar dessa minoria feliz. Este desequilíbrio provem de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Daí que neguem o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pelo bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, suas leis e suas regras (…). A ética –uma ética não ideologizada– permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo aos experientes investidores e governantes dos países a considerar as palavras de um sábio da antiguidade: 'não compartilhar com os pobres os próprios bens é como roubá-los e matá-los.”

Não às mulheres sacerdotes, mas mais presença na Igreja: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homem e mulher têm a mesma dignidade, propõem à Igreja profundas perguntas que a desafiam, das quais não se pode esquivar de maneira superficial. O sacerdócio reservado aos homens, como signo de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode se tornar particularmente conflituosa quando se identifica muito com a divindade sacramental com o poder (…). Aqui há um grande desafio para os pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica com respeito ao possível local da mulher ali onde se tomam decisões importantes, nos diversos âmbitos da Igreja”.

Não ao aborto, mas sim à compreensão das mulheres que abortam. “Precisamente por que é uma questão que faz à coerência interna de nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não deve ser esperado que a Igreja mude sua postura sobre esta questão. Quero ser completamente honesto o respeito desse assunto. Este não é um tema sujeito a supostas reformas ou 'modernizações'. Não é progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana. Mas também é verdade que fizemos pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que se encontram em situações muito duras, onde o aborto se apresenta como uma rápida solução das suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surge como produto de uma violação ou em um contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender essas situações de tanta dor?”.

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