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Arquivo EL PAÍS

‘Pixote’ foi mais que uma história

O filme mais famoso de Hector Babenco marcou o começo da trágica historia de Fernando Ramos da Silva, seu principal ator. Em 1987, O EL PAÍS publicou sobre a sua morte

Fernando Ramos da Silva num momento do icônico filme 'Pixote'
Fernando Ramos da Silva num momento do icônico filme 'Pixote'

[O cineasta Hector Babenco faleceu na noite desta quarta-feira aos 70 anos. Recuperamos a trágica história, publicada originalmente em espanhol em 1987, sobre a morte de Fernando Ramos da Silva, o principal ator do filme 'Pixote: A Lei do mais Fraco']

Em 1979, Fernando foi selecionado para o papel de um pequeno marginal em um dos filmes mais agudos realizados no Brasil

Como costuma acontecer em casos assim, há duas versões totalmente contraditórias. A polícia de São Paulo afirma ter perseguido dois assaltantes até um barraco numa periferia miserável da maior cidade brasileira. Um deles se entregou, o outro enfrentou os policiais a bala e foi morto no tiroteio. Poderia ser uma dessas mortes rotineiras na violência dos subúrbios da Grande São Paulo, onde a polícia costuma atirar várias vezes antes de insinuar qualquer pergunta. Mas Fernando Ramos da Silva, de 19 anos, foi, mais do que um rosto, uma história conhecida pelos brasileiros: ele era Pixote, personagem-título de um filme de Hector Babenco.

Fernando exigiu 5% do total arrecadado na bilheteria. Apesar de não ter obrigação jurídica, Babenco propôs ao rapaz uma casa ampla

As versões são contraditórias, mas uma coisa ninguém pode negar: na tarde da terça-feira passada [25 de agosto de 1987] houve um morto, um rapaz de 19 anos chamado Fernando Ramos da Silva, abatido por quatro tiros no peito. Em 1979, Fernando foi selecionado entre 1.300 outros meninos para o papel de um pequeno marginal em um dos filmes mais agudos realizados no Brasil nos últimos anos. Ganhou, na época, o equivalente a 1.000 dólares por seu trabalho [cerca de 11.000 reais, levando-se em conta a inflação do dólar entre 1981 e 2016]. Não era um ator-mirim: sua única experiência havia sido numa peça de teatro montada quatro anos antes. Vivia, com a mãe e sete irmãos, numa casa de quarto e sala na Vila Ester, perdida na periferia de São Paulo [em Diadema]. O filme teve um sucesso espetacular no Brasil e uma boa carreira no exterior. Fernando decidiu mover uma ação contra o diretor Babenco, exigindo 5% do total arrecadado na bilheteria. Pixote passou a ser um símbolo. Apesar de não ter nenhuma obrigação jurídica, Babenco propôs ao rapaz que retirasse o processo em troca de uma casa ampla, com três quartos. O acordo foi consumado enquanto Fernando se debatia em fracassadas tentativas de prosseguir a carreira de ator.

Contrato cancelado

Obteve pequenos papéis em filmes importantes e um contrato com a Rede Globo. Trabalhou por seis meses nessa fábrica de estrelas, até que o contrato foi cancelado: Fernando não conseguia memorizar seu papel na novela O amor é nosso. Seu rosto voltou a aparecer nos noticiários em maio de 1984, quando foi detido sob a acusação de assaltar a casa de um comerciante em Diadema.

Durou pouco: em menos de seis meses, a mãe vendeu a casa e retornaram todos à mesma Vila Ester de sempre

Para o Brasil, foi a dura constatação de que Pixote caminhava na vida real pelo mesmo caminho que havia representado no cinema: o menino criado às margens de um sistema de injustiça crescia e, para enfrentar a vida, criava regras próprias. Todo mundo que o viu no filme se assombrou com a naturalidade com que o menino atuava, sua sinceridade e sua frieza.

A tragédia, entretanto, estava à margem do filme: quando as luzes se apagaram, Fernando Ramos da Silva não se conformou em continuar sendo Fernando Ramos da Silva. Na falta de outro contrato, desempenhou o único papel que lhe restava: o de Pixote.

Para o Brasil, foi dura a constatação de que Pixote caminhava na vida real pelo mesmo caminho que havia representado no cinema

Quando foi preso em 1984, conseguiu não ser levado para um reformatório. O juiz o deixou em liberdade, e o prefeito de Duque de Caxias, no Grande Rio, lhe deu de presente uma casa para que se mudasse com a mãe e os irmãos e começasse uma nova vida. Durou pouco: em menos de seis meses, a mãe vendeu a casa e retornaram todos à mesma Vila Ester de sempre. Fernando comprou um carro e continuou procurando trabalho. Apaixonou-se por uma moça da sua idade, Maria Aparecida. Há pouco mais de um ano, o casal teve uma filha, Jacqueline.

O regresso à pobreza na periferia da cidade mais rica e opulenta do Brasil foi, para Fernando, uma volta à realidade. Passou a odiar o personagem Pixote, à medida que cumpria, como numa trágica profecia, o itinerário do menino do filme.

*Este texto foi publicado, em espanhol, na edição impressa do EL PAÍS de 01/09/1987.

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