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Golpe na Turquia: uma tragédia em dois atos

Erdogan encabeçou como um autêntico dirigente de seu povo a resistência contra a rebelião Mas as represálias desmedidas contra golpistas lhe retiram legitimidade aos olhos do mundo

Juan Carlos Sanz
Manifestantes participam de protesto contra o fracassado golpe de Estado na Turquia.
Manifestantes participam de protesto contra o fracassado golpe de Estado na Turquia.SEDAT SUNA (EFE)

Pouco depois da meia-noite de sexta-feira, Akin Özcer, um turco liberal que já atuou como diplomata e hoje escreve colunas políticas na imprensa, atravessa a segunda ponte sobre o Bósforo. “Se eu tivesse esperado uma hora a mais, estaria morto, crivado de balas pelos militares que abriram fogo contra a multidão”, lembrava ele, ainda tomado pelo estupor, em um café na orla leste do rio.

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Naquela mesma hora, Recep Tayyip Erdogan voava, em uma aeronave particular, a partir da costa do mar Egeu. Um pelotão de soldados tinha se dirigido ao seu hotel na região turística de Marmaris com a ordem de capturá-lo, vivo ou morto. A pequena aeronave do presidente da Turquia já estava sob a mira do radar de disparo de mísseis de dois F-16 dos golpistas quando o seu piloto teve a frieza de responder pelo rádio que se tratava de um voo comercial da Turkish Airlines.

Com o peso da morte —ou da prisão— sobre a sua cabeça, o dirigente que mais poderes acumulou na Turquia desde Mustafá Kemal Atatürk se escondeu de madrugada no principal aeroporto de Istambul. Recorreu às mesmas redes sociais e canais de televisão privados cuja liberdade vem procurando limitar desde que assumiu o poder para conclamar a população a conter o golpe nas ruas. Seus seguidores, além de outras pessoas que nunca votaram nele, ainda comemoram nas praças das cidades turcas o fracasso do maior levante militar realizado no país desde 1980.

Yavuz Baydar, comentarista político demitido de um dos principais jornais diários turcos por pressão do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, também circulava por aquela ponte norte sobre o Bósforo quando o rádio divulgava a informação sobre o bloqueio militar na ponte sul. “Os especialistas afirmam que por trás do golpe estariam três setores diferentes da cúpula militar”, explica Baydar, que apoiou as reformas do AKP em seus primeiros Governos antes de rejeitar o desvio autoritário do partido islâmico. “Há seguidores de Fethullah Gülen, kemalistas e simples oportunistas que tentaram se aproveitar do golpe para subir na hierarquia militar”, afirma.

Seu diagnóstico coincide, em parte, com o de Egemen Bagis, ex-ministro de Assuntos Europeus e ex-assessor de Erdogan para questões internacionais dentro do AKP. “O golpe de Estado foi dirigido principalmente por generais ligados à confraria islâmica do imã Gülen, exilado nos Estados Unidos, embora outros dirigentes também tenham participado em troca de promessas de alguma recompensa”, avalia Bagis.

Seria o caso, por exemplo, do ex-comandante da Força Aérea general Akin Özturk, a quem se atribui o comando do levante e que supostamente pretendia ser nomeado chefe do Estado Maior. As imagens de Özturk divulgadas após a sua prisão, em que ele aparece com hematomas e uma orelha vendada, deram origem aos protestos da Anistia Internacional, que tem denunciado abusos e maus tratos nas ações maciças realizadas contra os golpistas.

Erdogan permanece em Istambul —feudo político do líder islamista (onde foi prefeito) e sede do Primeiro Comando do Exército, que se manteve leal ao Governo na sexta-feira—, em sua residência no distrito de Üsküdar, na região conservadora ao leste da cidade, desde o fracasso da intentona. Não há previsão, até o momento, de quando retornará ao palácio presidencial da capital, Ankara, a fim de presidir uma reunião decisiva do Conselho de Segurança Nacional, o órgão responsável pela defesa nacional e que define os membros da cúpula militar. O vazamento de que estaria em curso uma depuração maciça de elementos gülenistas nas Forças Armadas é apontado como uma das hipóteses para explicar a rebelião.

“Com a experiência de ter vivido quatro golpes de Estado desde 1971, tenho a impressão de que esse levante foi feito de forma muito estranha”, diz Baydar sobre os movimentos militares da última sexta-feira, “mas o que mais me surpreende é a descomunal magnitude das represálias —um expurgo generalizado— ordenadas pelo presidente Erdogan”.

O ex-diplomata Özcer, que serviu na França e na Espanha antes de trabalhar na aproximação entre Turquia e União Europeia, agora apoia a política linha-dura do Governo, com milhares de detenções e dezenas de milhares de servidores públicos afastados de seus cargos. “É a única forma de impedir que voltem a disparar contra seu próprio povo”, alega. O ex-ministro Bagis também se mostra partidário da reinstauração da pena de morte para os golpistas se o Parlamento aprovar. “Não devemos nada à UE”, diz em resposta à ameaça de Bruxelas de excluir a Turquia do processo de adesão se a pena capital for adotada.

Tensão social

A tensão aflorou até mesmo entre setores sociais habitualmente moderados depois do trauma causado por um golpe que custou mais de 230 vidas e transformou edifícios oficiais de Ankara bombardeados pelos revoltosos em autênticas zonas de guerra. Esse estado de opinião que se instalou na sociedade turca pode estar sendo aproveitado como um sinal do céu, receia o colunista Baydar, “para implantar um sistema monolítico de inspiração baazista, de partido único em um Governo purgado por Erdogan”.

Os turcos esperam ter-se libertado da maldição de meio século de golpes militares em um ato de heroísmo democrático coletivo, encabeçados por seu líder político há mais de uma década. Mas, como em toda tragédia, o destino parece tê-los arrastado pelo caminho do sectarismo e da vingança desmedida.

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