As mulheres brasileiras dizem basta
Os motivos nunca faltaram, mas, na última semana, o grito foi às ruas
Centenas de mulheres foram às ruas do centro de Porto Alegre, no sul do País, na tarde desta terça-feira com cartazes defendendo o direito ao aborto, contra a intolerância e o machismo. "A gente está aqui porque somos violentadas todos os dias, em todos os lugares", disse uma manifestante no megafone. Um dos cartazes, sugestivo, alertava “Mexeu com uma, mexeu com todas”. A mesma cena se repetiu em outras capitais desde a semana passada. No Rio, milhares de mulheres saíram às ruas no dia 28, com a mesma tônica, influenciadas ainda pela aprovação do projeto que limita o acesso à pílula do dia seguinte em hospitais públicos para mulheres estupradas. Um dos autores do projeto é o deputado Eduardo Cunha, denunciado na Lava Jato, e que se segura no cargo de presidente da Câmara. Por isso, nos últimos dias, as brasileiras resolvem gritar: basta.
Na sexta foi a vez de São Paulo. O grito cresceu, com 15.000 mulheres repetindo em plena avenida Paulista o que as cariocas já haviam gritado: "Fora Cunha". "Machismo mata, feminismo liberta." "Se cuida, se cuida, se cuida seu machista. A América Latina vai ser toda feminista." O ato se repetiu no sábado. Um movimento inédito no Brasil, oitavo no mundo em número de mulheres assassinadas e com mais de 500.000 estupros por ano registrados, e repetidos casos de agressões por parte de seus parceiros. As manifestantes de Porto Alegre sentiram isso na pele, ao que parece. No domingo, algumas gaúchas afirmaram ter sofrido agressões durante uma feira de livros feministas por parte da Brigada Militar da capital, embora não tenham registrado boletim de ocorrência por temer represália, segundo o jornal Zero Hora.
Mas o que ocorreu de diferente agora para que finalmente as feministas tomassem as ruas? Uma sucessão de fatos em um curto período de tempo produziu o combustível para essa catarse. Começou há duas semanas, quando pedófilos publicaram comentários assediando uma garota de 12 anos que participava da edição infantil do MasterChef Brasil. Os assédios a Valentina produziram uma reação quase que imediata. O coletivo Olga lançou a campanha #PrimeiroAssedio, para que mulheres e homens relatassem a primeira vez que sofreram um assédio sexual, no intuito de expor quem praticava assédio virtual e coibir a prática. Em quatro dias, foram mais de 82.000 mensagens. Relatos de mulheres que foram molestadas quando crianças por amigos, vizinhos, parentes. Com os dados, foi possível calcular que a média de idade do primeiro assédio é 9,7 anos. Foi um primeiro movimento de solidariedade feminina ainda que restrito à rede.
Naquela mesma semana, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que dificulta o acesso ao atendimento médico de vítimas de estupro. O PL 5069 de 2013, exige que, para serem atendidas, as vítimas de estupro terão que passar primeiro por uma delegacia. Depois, deverão fazer um exame de corpo de delito para, só então, seguirem para o hospital, com os devidos documentos que comprovem que elas, de fato, foram estupradas. Mesmo assim, a lei pune o médico que indicar a pílula do dia seguinte para a vítima ou que orientá-la em relação ao direito de realizar um aborto legal - permitido em caso de estupro ou quando o feto é anencéfalo. A aprovação do projeto, que ainda deverá passar por votação no plenário, fez com que diversos coletivos feministas se articulassem para organizar manifestações contra a lei e pedindo a saída do presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
Os fatos pareciam orquestrados. No sábado retrasado, quando 5,7 milhões de alunos de todo o país fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), uma questão sobre o movimento social para o qual a feminista Simone de Beauvoir contribuiu para uma série de reações. A questão colocava a citação de Simone “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. Os alunos deveriam identificar o movimento social dos anos 60 que era coroado por essa colocação. O tema ferveu nas redes sociais. Muitos ficaram inconformados. Mas não adiantou reclamar. No dia seguinte, último dia de prova, o tema da redação voltou a tocar na ferida. "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira." E mais uma avalanche de comentários machistas engrossou o chorume na internet.
Tudo isso fortaleceu o movimento feminista que foi o primeiro a ir às ruas pedir a saída do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, e conseguiu agregar muita gente nessa luta. Para Pablo Ortellado, filósofo e professor da USP, isso é um reflexo do sucesso desse grupo em se comunicar com um público mais amplo. “Faz tempo que as mulheres estão fazendo um trabalho de conscientização”, diz. “As outras causas, como as indígenas, ambientais, legalização das drogas e, em certa medida, até o movimento negro, estão basicamente falando para si”.
Chamou a atenção nos protestos o número de meninas adolescentes. Em São Paulo, a estudante Marina Yazbek Mourão, 17, participou do ato, que começou na Praça do Ciclista e terminou na Praça da Sé, na sexta. “Estava lá porque não queremos ser privadas de mais nenhum direito”, disse. “Quando soube da aprovação do PL, fiquei indignada. Vi num site e comecei a pesquisar, porque achei que era piada”.
Para Jaqueline Vasconcellos, uma das organizadoras da marcha, o projeto de lei foi a gota d'água. “A aprovação do PL foi a mola propulsora”, diz. “Saímos às ruas e pedimos a saída de Cunha da presidência da Câmara porque essas pautas fundamentalistas só estão sendo votadas porque ele está lá. E também pedimos a legalização do aborto”.
Marisa Sanematsu, diretora do Instituto Patrícia Galvão, acredita que as mulheres estão conseguindo agregar outros segmentos da sociedade em sua luta. Daí o tamanho da massa nas ruas. “A sensação que nos dá é que estamos vivendo um momento muito rico e muito importante de mobilização, e questões que dizem respeito às mulheres estão atingindo e mobilizando a sociedade como um todo”, diz. A presença de meninas muito jovens como Marina Yazbek e de muitos homens na marcha – o escritor Marcelo Rubens Paiva esteve no ato de sexta em São Paulo – ilustra bem essa diversidade. “Isso dá a sensação de que a pauta dos direitos das mulheres tem capacidade de sensibilizar as pessoas. Será que estamos vivendo algo parecido com 2013?”, pergunta Marisa.
Ainda é cedo para comparar o momento atual com o vivido em 2013, quando centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas do país primeiramente lutando pela redução da tarifa do transporte público, algo que logo se diluiu em outras pautas. “Para chegar ao novo junho, a mobilização tem que ser de muito maior magnitude, mas acho que o tema tem potencial para crescer ainda mais na rua”, diz Ortellado.
Jaqueline Vasconcellos diz que uma reunião será realizada nesta quarta-feira à noite para que os coletivos decidam quando será a próxima manifestação. “A próxima será muito maior”, diz. “Vamos unificar uma data e fazer em várias cidades”.
Mulheres, ocupai
Depois que Manoela Miklos, doutora em relações internacionais, foi à manifestação das mulheres no Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro, um elemento ficou marcante para ela: o som. “Eu nunca tinha parado para pensar no quão natural é que a voz do coletivo seja sempre masculina. E naquele dia, o som das mulheres gritando juntas foi muito marcante”, diz.
Quando leu as notícias sobre a manifestação no dia seguinte, ficou frustrada. “Me incomodou muito o fato de as narrativas serem todas masculinas. Os homens estavam falando sobre o quanto era importante ouvir as mulheres, mas eram eles falando!”, diz.
Desse incômodo, surgiu a campanha #AgoraÉqueSãoElas. Ao longo de toda esta semana, homens colunistas, escritores e jornalistas são provocados a convidar uma mulher a ocuparem seus espaços e escreverem no seu lugar. A campanha viralizou e diversos colunistas aderiram. “Não imaginei que ficaria tão grande”, diz Manoela. “A manifestação foi muito forte, mas foi algo muito furioso. Para mim, ficou o som. Um som que eu nunca tinha ouvido”.
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