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Delatora do Facebook se revela: “Financiam lucros com a nossa segurança”

Frances Haugen, ex-funcionária da rede social, diz num programa de televisão de grande audiência que estava por trás das recentes notícias exclusivas do ‘The Wall Street Journal’ sobre a companhia

Frances Haugenem sua entrevista ao ‘60 minutes’.
Frances Haugenem sua entrevista ao ‘60 minutes’.Robert Fortunato (AP)
Jordi Pérez Colomé

Frances Haugen, de 37 anos, engenheira de informática de Iowa, foi a pessoa que vazou os documentos internos do Facebook que embasaram as últimas informações exclusivas publicadas pelo The Wall Street Journal sobre a rede social. Isso incluía a notícia de que a empresa estava consciente de que o Instagram, sua rede social para fotos, era tóxica para muitas adolescentes. A ex-funcionária revelou sua identidade na madrugada desta segunda-feira, em um programa de televisão de grande audiência, e já nesta terça ela deporá sobre a rede no Congresso dos EUA.

“Havia constantes conflitos de interesse entre o que é bom para o público e o que é bom para o Facebook”, disse Haugen no programa jornalístico 60 Minutes, do canal CBS. “O Facebook sempre escolhia otimizar seu próprio interesse, ganhar mais dinheiro”, acrescentou. Antes de deixar o Facebook, em maio, ela conseguiu retirar uma grande quantidade de documentos de investigação e mensagens de chats internos nos quais ficava demonstrado que o Facebook oculta boa parte dos males que provoca. “Tive que levar comigo o suficiente para que ninguém pudesse questionar que isto é real”, disse no programa.

Um advogado dela pediu que ela receba a proteção federal concedida a quem faz denúncias através da Comissão de Valores e Ações dos EUA. Jeff Horwitz, autor das reportagens publicadas do Journal, identificou Haugen como “Sean” para proteger sua identidade durante os 10 meses em que manteve contato com ela antes de publicar os textos.

“Vi várias redes por dentro, e o Facebook é substancialmente pior”, disse Haugen, que trabalhou também no Google e Pinterest antes de entrar para o Facebook em 2019. Haugen estava no Departamento de Integridade Cívica, encarregado de fazer da rede “uma força para o bem da sociedade”. Semanas depois das eleições de novembro de 2020, vencidas por Joe Biden, a plataforma decidiu eliminar essa equipe. “Não houve distúrbios, podemos dissolver vocês”, ouviu a funcionária, segundo seu relato. Esse foi o momento em que ela se convenceu de que a empresa nunca melhoraria por sua plataforma de dentro para fora, e assim decidiu recorrer à imprensa e às autoridades federais. “O Facebook está cheio de gente boa e consciente. Mas lá dentro você fica sabendo de coisas que ninguém de fora sabe. Imagine como isso corrói você”, disse Haugen. “O Facebook está lutando consigo mesmo, estão escondendo informação. Não podemos solucionar problemas sozinhos, só juntos”, afirmou ela, em referência ao resto da sociedade.

Haugen é o rosto, até agora oculto, por trás da maior crise na rede social desde o escândalo da Cambridge Analytica. Há quem diga que esta crise é mais profunda, porque se trata de documentos internos provando que a companhia decidiu não agir, que internamente o Instagram é visto como algo nocivo para grupos de garotas adolescentes, e que o algoritmo premia o ódio porque é mais atraente e gera mais interações dos usuários, que assim passam mais tempo na plataforma.

“Não acredito que vão investir o suficiente para evitar que o Facebook seja perigoso”, disse Haugen. “Perceberam que se mudarem o algoritmo para torná-lo mais seguro, as pessoas passarão menos tempo na plataforma, clicarão em menos anúncios, e eles ganharão menos dinheiro.”

“O Facebook escolhe os lucros sobre a segurança. Financia lucros com a nossa segurança”, insistiu. Durante a longa entrevista, Haugen repetiu que dentro da companhia há muita gente que admite e reconhece estes problemas, mas que seus incentivos estão desalinhados: o que permite ganhar dinheiro é ruim para a sociedade. “Tenho muita empatia por Mark [Zuckerberg]. Nunca empreendeu este caminho para acabar criando uma plataforma de ódio, mas permitiu que fossem tomadas decisões cujas consequências secundárias são que o conteúdo de ódio chegue a mais gente”, diz.

Em um perfil de Haugen publicado pelo Journal depois da sua entrevista à CBS, a engenheira especifica qual era o objetivo central de suas revelações. “Se as pessoas só odiarem mais o Facebook por causa do que fiz, então terei fracassado. Acredito na verdade e na reconciliação, temos que admitir a realidade. O primeiro passo para isso é a documentação.”

Em um dos documentos extraídos por Haugen, analisava-se como os partidos políticos europeus tinha elevado o tom de agressividade em seus anúncios para que o algoritmo os levasse em conta. Segundo Haugen, esta é a mensagem que a filial da Europa enviava: “Estão nos obrigando a adotar posturas das quais não gostamos, que sabemos que são ruins para a sociedade, mas se não fizermos isso, sabemos que não ganharemos no mercado das redes sociais”. O ódio e a polarização seriam as moedas desse mercado, onde sem elas ninguém é capaz de se destacar. E os partidos políticos precisam muito se destacar.

Uma das grandes preocupações de Haugen, como de outros ex-funcionários que deixaram a companhia recentemente, são os estragos que o Facebook provoca em países não ocidentais. “É horrível o que o Facebook faz em outros países”, afirmou. “A maioria das línguas do mundo não tem uma internet livre e aberta, e o Facebook foi pagar e subvencionar a internet com planos de dados em alguns países com uma estrutura muito frágil para que usassem a plataforma. Tínhamos uma brincadeira dentro da companhia: se você quiser saber que países estarão em crise dentro de alguns anos, olhe para onde nos expandimos”, afirmou Haugen.

“O humor negro por trás da brincadeira é que as tecnologias da informação não são neutras”, esclareceu. Haugen disse então que o Facebook tem seus incentivos mal alinhados com os interesses das sociedades onde opera. “Cada vez que o Facebook se expande em uma nova área linguística, custa o mesmo ou mais criar os sistemas de segurança que já tem em inglês ou francês. Cada língua custa mais dinheiro, mas há menos clientes. As contas não fecham. Então, se houver 5.000 línguas no mundo, o Facebook tem seus sistemas adaptados talvez a 50 delas. Em todas as partes nas quais não as tem, as desinformação leva diretamente a que morra gente.”

Os problemas que o Facebook e outras redes sociais podem provocar tocaram de perto a vida de Haugen. Durante um ano em que esteve convalescente, um amigo a ajudou com as tarefas cotidianas. Com o tempo, esse amigo caiu em fóruns da internet que foram modificando suas posturas para uma mistura de ocultismo e supremacismo branco, segundo o Journal. “Uma coisa é estudar desinformação, e algo diferente é perder alguém para ela. Muita gente que trabalha nestes produtos só vê a cara positiva de tudo isto”, lamentou Haugen na entrevista.

O Facebook respondeu às suas declarações com este comunicado: “A cada dia nossas equipes precisam exercer um equilíbrio entre proteger o direito de bilhões de pessoas a se expressarem abertamente e a necessidade de manter a plataforma como um espaço seguro e positivo. Continuamos fazendo melhoras significativas para frear a distribuição de desinformação e conteúdo nocivo. Sugerir que promovemos o conteúdo ruim sem fazer nada não é verdade”.

Para Haugen a diferença está no sentido que damos a cada uma dessas palavras. É verdade que o Facebook faz “algo”, mas provavelmente não seja suficiente: “A companhia mente quando diz que tem feito avanços significativos sobre desinformação ou o ódio”, disse. Em um dos documentos vazados por Haugen se constata como o conteúdo prejudicial que o Facebook suprime é ridículo em proporção ao total.

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