EUA compram quase toda a produção até setembro do remdesivir, primeiro medicamento que combate a covid-19
O Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos Estados Unidos acordou com a Gilead Sciences receber 100% da produção de julho e 90% da de agosto e setembro
O Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos Estados Unidos (HHS, na sigla em inglês) anunciou nesta segunda-feira que alcançou um acordo com o laboratório californiano Gilead Sciences para garantir que praticamente toda a produção do remdesivir ―único medicamento aprovado pelas autoridades norte-americanas e europeias para o tratamento da covid-19― permaneça no país nos próximos três meses.
Em nota divulgada na segunda-feira, o HHS anunciou que reservou a aquisição de 500.000 tratamentos de remdesivir, sendo 94.200 a serem fabricados em julho, 174.900 em agosto e 232.800 em setembro. Estas cifras representam 100% da produção do remdesivir da empresa em julho, e 90% em agosto e em setembro. Cada tratamento se compõe de seis ampolas do medicamento. O HHS atribuirá o remdesivir aos departamentos estaduais e territoriais saúde dos EUA, levando em conta a situação epidemiológica de cada área, e a partir deste nível intermediário as doses serão distribuídas aos hospitais.
O medicamento foi aprovado em maio em regime de urgência pela Administração de Alimentos e Drogas (FDA). No fim de junho, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) recomendou a comercialização do fármaco, à espera do sinal verde definitivo da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE). A recomendação da EMA se baseia principalmente nos resultados preliminares do maior estudo já feito com este medicamento, publicados na revista norte-americana New England Journal of Medicine (NEJM), que concluíram que com esse fármaco os doentes se recuperavam em média de quatro dias antes que o resto dos pacientes.
A NEJM já publicou três artigos científicos certificando a eficácia do remdesivir, enquanto outro, na The Lancet, não encontrava benefícios. O ensaio negativo foi realizado com 237 pacientes tratados na China. Já o primeiro da NEJM, publicado em 22 de maio, trazia os resultados preliminares de um estudo internacional com 1.065 pacientes, financiado pelo Instituto Nacional de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (Niaid), que demonstrava uma redução de 31% no tempo de recuperação (de 15 dias no grupo placebo para 11 nos pacientes tratados com remdesivir) e também ligeiramente a mortalidade (era de 12% na amostra com placebo, e 8% na amostra medicada com o antiviral), embora isto não fosse estatisticamente significativo. O segundo artigo da NEJM, de 27 de maio e financiado pela Gilead, concluía que não havia diferenças significativas entre tratar os pacientes por 5 ou 10 dias. E o terceiro, com 53 pacientes em uso compassivo e pago pelo laboratório que o comercializa, concluía que tinha havido melhoras clínicas em 68% dos pacientes.
“É um bom fármaco, mas estamos decepcionados porque, se estivesse associado a uma redução da mortalidade, seria melhor. Não será o fármaco definitivo, mas é importante ver que os dois que vão bem [o remdesivir e a dexametasona] mostraram resultados para tratar pacientes graves”, opina Toni Trilla, chefe de Medicina Preventiva do Hospital Clínic de Barcelona.
Os profissionais sanitários já utilizaram muitas substâncias para tratar a covid-19, incluindo anticorpos monoclonais e a dexametasona, um corticoide usado para enfermidades reumáticas ou autoimunes. O remdesivir só era usado em ensaios clínicos e para uso compassivo (ou seja, em casos excepcionais, antes de ser autorizado e quando não há alternativa terapêutica).
2,4 milhões de casos nos Estados Unidos
Em seu comunicado, o secretário (ministro) de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, Alex Azar, se desmanchou em elogios ao presidente Donald Trump, que segundo ele “conseguiu um acordo incrível para assegurar que os norte-americanos tenham acesso ao primeiro tratamento autorizado para a covid-19. Queremos assegurar que qualquer paciente norte-americano que necessite do remdesivir poderá consegui-lo. A Administração Trump está fazendo tudo o que está ao seu alcance para aprender mais sobre tratamentos para a covid-19 e assegurar estas opções ao povo norte-americano”.
Os Estados Unidos são o país que concentra o maior número de infecções pela covid-19, com 2,5 milhões dos 10,2 milhões de diagnósticos registrados no mundo. Na terça-feira, bateu seu recorde de novos casos diários desde o início da pandemia, 47.000 em um só dia, com Califórnia, Texas e Arizona como os principais focos. Também acumula 126.000 das 506.000 mortes contabilizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Enquanto a curva de contágios na maioria dos países europeus decaiu pronunciadamente após alcançar um pico, a dos Estados Unidos não parou de aumentar em nenhum momento.
O HHS afirmou em seu comunicado que os hospitais pagarão aproximadamente 3.200 dólares (17.000 reais) por tratamento. A Gilead Sciences divulgou na segunda-feira que cada terapia custaria 2.340 dólares (cerca de 12.500 reais) nos países desenvolvidos.
Disputa intercontinental por milhões de doses
Depois do anúncio dos Estados Unidos, a Comissão Europeia indicou nesta quarta-feira que está em processo de negociação com a farmacêutica Gilead para reservar a compra do fármaco. “A comissária (ministra) da Saúde, Stela Kyriakides, manteve numerosas conversações com o fabricante, incluídas as relativas à sua capacidade de produção. A Comissão também negocia neste momento com a empresa a reserva de doses de remdesivir para os Estados membros da UE”, afirmou o organismo comunitário, informa Bernardo de Miguel.
A disputa intercontinental para adquirir milhões de doses prenuncia a grande batalha pelo acesso a possíveis tratamentos e às futuras vacinas. A escalada do conflito é previsível, diante da polêmica internacional que já se formou no início da pandemia na busca por um produto muito mais simples de fabricar: as máscaras.
“A Comissão toma nota do anúncio feito pelos EUA”, afirma o organismo europeu em seu sucinto comunicado. Mas o mal-estar de Bruxelas e demais capitais europeias com as táticas de acumulação de estoque é evidente, sobretudo porque chega depois das escaramuças pelas máscaras e pela suposta tentativa norte-americana de assumir o controle da empresa alemã CureVac, uma das mais avançadas na pesquisa sobre uma possível vacina.
A batalha pelo remdesivir começou inclusive antes de sua comercialização. A Agência Europeia de Medicamentos recomendou em 25 de junho que se autorizasse sua venda. Bruxelas espera dar a luz verde definitiva ainda nesta semana, provavelmente na sexta-feira.
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