Uma dose para muitos ou duas doses para poucos: o dilema que divide a América Latina na luta contra a pandemia

Embora possa parecer melhor proporcionar alguma proteção a muita gente, e não ao contrário, não está imediatamente claro qual das opções deixa mais espaço para que o vírus continue se reproduzindo

Aplicação de uma dose da vacina Pfizer no Teatro Carlos Gomes, em centro do Rio, em 13 de junho passado.Antonio Lacerda (EFE)

Apesar de o ritmo de vacinação ter se acelerado na América Latina durante as últimas semanas, quase sete meses depois da primeira vacina injetada no subcontinente o grau de imunização coletiva ainda é insuficiente: menos de um em cada cinco latino-americanos já recebeu a pauta completa, e a proteção parcial oferecida por uma só dose nos esquemas de dupla dose (usada em todas as vacinas, exceto a do laboratório norte-americano Janssen, de dose única) alcança menos de um terço. A complexidade de manter programas de vacinação ao mesmo tempo ambiciosos e urgentes, mas que necessitam de duas doses, se torna mais evidente do que nunca nesta região caracterizada pela desigualdade de acesso aos serviços públicos.

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Enquanto isso, os fornecedores não mantêm a constância que seus clientes desejariam. O laboratório russo Gamaleya, que produz a Sputnik V, vem incorrendo em atrasos desde janeiro ―na Argentina, as remessas de componentes são adiadas, e a produção a cargo de laboratórios locais praticamente não decolou; na Guatemala, as autoridades cogitam pedir de volta o dinheiro pago na compra de oito milhões de doses, das quais nem 5% foram entregues. Na semana passada, o secretário de Saúde de Bogotá alertou para a falta de doses da Pfizer para completar pautas já iniciadas de vacinação, embora esperasse recebê-las em breve. Antes, a Sinovac tinha adiado o início maciço da vacinação, em maio, por causa de entregas inesperadamente lentas em abril.

Os picos de contágio que não cessam (alimentados por variantes como a delta e a lambda, além de outras mutações que já pairam no horizonte) geram questionamentos sobre a estratégia de vacinação dos países latino-americanos. Há dois dilemas diferentes, mas paralelos: a decisão entre usar as doses disponíveis para proteger totalmente as pessoas que já têm a primeira dose, ou maximizar a quantidade de indivíduos que têm pelo menos alguma defesa contra o coronavírus; e a possibilidade (ainda incerta) de combinar vacinas de laboratórios distintos para a segunda dose, à medida que forem chegando.

Brasil prioriza proteção parcial

Na Argentina, para cada indivíduo com a pauta completa há três que receberam apenas uma dose. No Brasil, a proporção é de 1 para 1,5. São dois países que estão adotando uma estratégia que prioriza a proteção parcial. O mesmo se intui dos dados da Costa Rica, Bolívia e Equador. No Peru e Colômbia, por outro lado, o número de pessoas já com a pauta completa supera o de indivíduos parcialmente imunizados. Essas diferenças podem refletir decisões explícitas sobre o que fazer com as doses recebidas, mas também estão ligadas aos prazos recomendados para cada vacina. A AstraZeneca requer 12 semanas, enquanto que para a Sinovac bastam 4. No caso da Pfizer o intervalo é de 3 a 12 semanas, segundo o lugar, uma variação que também obedece em parte às decisões de prioridade. A Colômbia, por exemplo, ampliou recentemente para três meses o intervalo da fórmula germano-americana, com a intenção explícita de melhorar sua efetividade e o efeito implícito de priorizar imunizações parciais.

O Reino Unido foi o país pioneiro no Ocidente ao implementar esta estratégia desde o primeiro momento. Fez isso numa fase de difícil contágio, esperando que a proteção parcial salvaria mais vidas do que a proteção total a uma menor parcela da população. Alguns modelos estatísticos publicados posteriormente avalizam essa estratégia, mas, para que as contas fechem, essa proteção parcial de primeira dose precisa ser elevada. Uma destas estimativas, publicada na revista British Medical Journal, calibrou reduções de taxas de mortalidade consideráveis: uma em cada dez vidas salvas em comparação com uma estratégia de completar o quanto antes a segunda dose. Mas a letra pequena é crucial nestes cálculos: a vantagem da estratégia desaparecia por completo quando a efetividade da vacina se reduzia a 70%.

Eficácias superiores a 70% para uma só dose é algo que só se viu claramente com as opções apoiadas em mRNA (Pfizer, Moderna) e no princípio dessas medições, com as primeiras ondas de vacinação nos EUA e Israel. Dados recentes do Reino Unido sobre a efetividade das vacinas Pfizer e AstraZeneca contra a variante delta, por exemplo, desenham um cenário de distância considerável na proteção entre primeira e segunda dose contra a mutação: de 49% para 89% no caso da Pfizer; de 35% para 79% na AstraZeneca.

Não se conhece o equivalente destes valores para o CoronaVac ou Sputnik V, duas das mais empregadas na Argentina, Brasil e outros países do subcontinente. Mas estes dados implicam uma modificação substancial em relação à efetividade de uma só dose antes do advento da delta, o que explica a prudência que guia a reconsideração de alguns países que até agora priorizavam a difusão da primeira dose, e hoje estão revendo sua abordagem. No Reino Unido, aliás, está emergindo a hipótese (não comprovada) de que a vacinação parcial poderia ter incentivado o estabelecimento da variante delta, em sua tentativa de penetrar um muro imunológico mais acessível que o produzido pela dose dupla.

Mais do que confirmar ou desmentir essas hipóteses, o exercício é útil para entender o dilema de política pública: embora em um primeiro momento possa parecer melhor proporcionar alguma proteção a muita gente, ao invés de proteção total a menos gente, não está imediatamente claro qual das opções deixa mais espaço ao vírus para que continue a se reproduzir.

Misturar vacinas?

Uma possível saída para este dilema poderia passar por combinar vacinas seguindo um critério de disponibilidade. Este tipo de estratégia foi inicialmente considerada na Europa depois de descoberta de raríssimos casos de trombose entre mulheres menores de 50 anos com a AstraZeneca. É por isso que a maioria dos dados disponíveis se refere a esta vacina, a qual agora chama a atenção nos países da América Latina pela flexibilidade que proporcionaria para lutar com problemas de entregas, ou inclusive (e isto é, por enquanto, apenas especulação informada) a possível complementariedade em reforço imunológico, especialmente interessante diante da implantação de variantes mais eficazes no contágio.

A informação reunida sobre essa combinação é positiva, mas preliminar. O estudo CombiVacS, realizado em maio por pesquisadores do Instituto de Saúde da Universidade Carlos III de Madri, mostrou que a administração de uma segunda dose da Pfizer entre 8 e 12 semanas depois de uma primeira da AstraZeneca produzia uma resposta imunológica significativa. Estudos similares saíram na Alemanha pouco depois: um, feito com profissionais da saúde em Berlim, comprovou que a resposta imunológica ocorria e talvez fosse inclusive um pouco melhor do que a combinação de duas doses de Pfizer com 3 semanas de intervalo. Outro, na Universidade de Saarland, observou que essa reação era melhor do que com duas doses da AstraZeneca, e pelo menos tão boa como duas da Pfizer. No fim de junho, o estudo Com-COV do Reino Unido se uniu ao coro para adicionar que a reação imunológica era boa independentemente da ordem da combinação. Nele também se concluiu que talvez a combinação aumentasse a probabilidade de efeitos secundários leves, como a febre e o cansaço habituais depois de qualquer vacina, não só contra a covid-19, sintomas que indicam a ativação do sistema imunológico. Mas isto não é algo que preocupe particularmente os médicos e cientistas.

Outros estudos avançam: em Moscou, está sendo analisada a combinação da Sputnik V com a da AstraZeneca; nas Filipinas, ambas, Pfizer, Moderna, J&J e Covaxin combinadas com a Coronavac (da Sinovac); nos EUA e Reino Unido, as mesmas equipes que já publicaram resultados vêm provando outras misturas. Enquanto isso, países tão destacados no processo de vacinação mundial, como Alemanha, França, Espanha, Itália, Canadá e o próprio Reino Unido, já praticam a combinação de fórmulas.

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Este consenso, assim apresentado, pode parecer definitivo, mas é preciso dimensionar e interpretar os estudos antes de transformá-los em política pública. Só dois deles (o espanhol e o britânico) cumprem os requisitos de ensaio clínico com grupo de controle e outro de tratamento, para poder estabelecer diferenças causais entre regimes de vacinação, não só observadas. Mas eles abrangem poucas centenas de pessoas, e unicamente para observar a reação do sistema imunológico. Ou seja: esta evidência é comparável à obtida nos estudos de fase dois que todas as vacinas aprovadas tiveram que passar, mas não aos de fase três, os definitivos para comprovar eficácia dessa reação imunológica para evitar contágios. Até agora, observa-se que os mecanismos que os cientistas buscam produzir estão sendo ativados com estas combinações de vacinas, e que não há efeitos secundários graves que surjam com frequência, mas a hipótese não foi submetida a uma prova rigorosa contra o vírus que envolva milhares de pessoas, como se fez com os regimes de vacinação anteriores.

A cautela, uma vez mais, volta a se impor perante um cenário incerto. As evidências científicas podem ajudar a iluminá-lo, mas, sem oferecerem um guia incontestável para a tomada de decisões. Nesta semana, por exemplo, um tribunal em Cartagena, na Colômbia, proibiu o intervalo de 12 semanas imposto pelo Governo para a segunda dose da Pfizer entre novos vacinados, respondendo à queixa de um cidadão que exigia receber a segunda dose após 21 dias. A sentença dizia que não há “amparo científico” à nova política, empregando a ciência como um escudo sem fissuras para a decisão. Entretanto, diversos indícios mostram que tanto na questão do prazo como da mistura a ciência é mais um diálogo do que uma série de máximas estabelecidas, dificultando a intenção de alterar responsabilidades que, constitucionalmente, caberiam aos poderes públicos.

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