Senado do Chile rejeita impeachment de Sebastián Piñera pelos ‘Pandora Papers’
Oposição não consegue os 29 votos necessários para abreviar, às vésperas eleições gerais, o mandato do presidente por supostas irregularidades na venda de um projeto de mineração
A cinco dias das eleições gerais no Chile, o presidente conservador Sebastián Piñera superou o teste político de maior complexidade de seu segundo mandato: um processo de impeachment quando faltam menos de quatro meses para que deixe o cargo, em março de 2022. Ao longo desta terça-feira, o Senado chileno submeteu a julgamento o pedido que havia sido aprovado na semana passada na Câmara pelo quórum de 78 deputados. Os senadores fizeram discursos de 15 minutos cada um anunciando sua votação —a qual só ocorreria oficialmente perto da meia-noite—, deixando claro que a oposição não alcançaria os 29 votos necessários para cassar o mandato de Piñera, questionado por supostas irregularidades na venda de um projeto de mineração concretizada nas Ilhas Virgens Britânicas, conforme mostrou a investigação jornalística dos Pandora Papers.
Era altamente provável que a destituição caísse no Senado, pois precisava de dois terços dos 43 senadores. A oposição só tem 24 votos na Casa, por isso devia convencer pelo menos cinco governistas. Era uma missão complexa, mas não impossível, dado que inclusive parte do setor político de Piñera deu as costas a ele. Em meio a uma crise política que se prolonga desde as revoltas de 2019, que derivaram em um profundo problema de popularidade —o respaldo ao presidente está em torno de 16%, segundo a última pesquisa Cadem—, o escândalo dos Pandora Papers aprofundou a insatisfação da sua aliança em meio a uma polarizada eleição presidencial e parlamentar, onde aparecer ao lado do mandatário não agrega votos. Na sessão desta terça no Senado, o governista Manuel José Ossandón, candidato à reeleição na votação do próximo domingo, não só se absteve como também fez um duro pronunciamento político contra Piñera, apontando a difusa linha de separação entre seus negócios e a política.
“Para mim, a honra é muito mais importante que uma sentença”, afirmou Ossandón, do partido Renovação Nacional, que já foi liderado pelo próprio Piñera e hoje mantém uma relação complexa com o mandatário. Apesar de alegar que não havia provas para a acusação, Ossandón fez uma forte crítica: “Todos sabemos quem é ele, quais são seus modos, onde estão seus limites e o que ele tem feito em sua vida empresarial e política. Eu sempre disse que não compartilho dos modos como ele mistura política e negócios, o privado e o público, porque acredito que não foi capaz de impor limites”.
A jornada no Congresso (que funciona em Valparaíso, a 100 quilômetros de Santiago) começou com a exposição da acusação por três deputados da oposição, durante quase uma hora e meia. “Embora incomode ao presidente, não há prazo que não se cumpra nem dívida que não se pague. Se hoje a acusação for rejeitada, seguiremos insistindo por todos os mecanismos institucionais e internacionais”, ameaçou pela manhã a deputada Gael Yeomans, da Frente Ampla de esquerda, que participou da apresentação no Senado. Depois foi a vez do advogado do mandatário, Jorge Gálvez, que apontou as motivações eleitorais para empurrar a destituição. “Por que em vez de investigar se improvisa uma acusação constitucional, com o ânimo declarado de situar sua votação antes da eleição, em meio a uma campanha presidencial e parlamentar?”, questionou o jurista, acompanhado de dois dos ministros políticos de Piñera, Juan José Ossa e Jaime Bellolio.
À tarde, quando começaram os discursos de cada um dos 43 senadores, uma das intervenções mais esperadas era a da senadora democrata-cristã Yasna Provoste, a única candidata a presidente que integra o Senado. Como toda a oposição, a representante centrista anunciou seu voto a favor da destituição e afirmou que “Piñera danificou como ninguém a democracia”. “A história julgará aquele que, estou convencida, é o pior Governo em democracia nos últimos 70 anos”, afirmou Provoste, que nesta campanha não conseguiu se diferenciar do candidato presidencial de esquerda, o deputado Gabriel Boric, e dificilmente passará ao segundo turno. O senador socialista José Miguel Insulza, ex-secretário geral da Organização dos Estados Americanos, também anunciou seu voto a favor do julgamento político, mas ressalvou: “Preferia que esta acusação ocorresse em outro momento”.
Insulza apontou um assunto que paira no debate político chileno e tem relação com o momento desta acusação constitucional. Considerando que a lei permitia ao Congresso iniciar um julgamento político até seis meses depois de concluído o mandato presidencial, em 11 de março, determinados setores consideravam que se tratava de uma irresponsabilidade política tirá-lo do cargo em meio à maior crise dos últimos tempos, embora houvesse motivos para investigá-lo. Na Câmara de Deputados, o parlamentar Pepe Auth, um centro-esquerdista sem partido, não votou a favor do impeachment na semana passada e nesta terça denunciou ser alvo de uma campanha difamatória: “Pepe Auth traidor, operador da direita”, dizia um cartaz instalado em plena via pública, com a assinatura da Central Unitária dos Trabalhadores (CUT), a principal organização sindical do país.
Isso é parte do clima político no Chile nas horas finais de uma campanha polarizada, aberta e competitiva, onde os principais favoritos, segundo as últimas pesquisas conhecidas, são Gabriel Boric, o candidato da Frente Ampla e do Partido Comunista, e o líder do Partido Republicano, de extrema direita, José Antonio Kast.
A divulgação dos Pandora Papers, no começo de outubro, desatou uma crise política na fase final do Governo. Mal se destacando na linha de flutuação das revoltas sociais de outubro de 2019, Piñera terminará seu segundo mandato na mira do Ministério Público, que logo depois da publicação da investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) abriu um inquérito para apurar supostas irregularidades na venda do projeto minerador Dominga, em 2010. O julgamento político que buscava a destituição do presidente citava atos de sua Administração que “comprometeram gravemente a honra da Nação e infringiram abertamente a Constituição e as leis”, segundo o documento de 285 páginas apresentado pelos deputados de oposição.
Nunca antes um presidente chileno havia sido investigado pelo Ministério Público devido à sua atuação pública. Tampouco nunca no passado recente um mandatário do Chile terminou antecipadamente seu mandato —o último foi Salvador Allende, que morreu durante o golpe de Estado de 1973. Piñera agora esteve perto, porque há dois anos, na primeira vez que a oposição tentou destituí-lo, em meio à agitação social, a acusação não chegou a ser aprovada na Câmara de Deputados.
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