A emblemática atitude de Pazuello, que substituiu um cavalo de carga por um soldado negro

Não é de se estranhar a insensibilidade do bolsonarismo-raiz perante o genocídio que está sendo perpetrado, primeiro negando a pandemia, e depois desprezando a vacina

O ex-ministro Pazuello participa de ato político ao lado de Bolsonaro no último dia 23, no Rio.Bruna Prado (AP)

O hoje famoso general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que está no olho do furacão na CPI da Pandemia no Senado por causa da sua desastrosa gestão da crise da covid-19 e suas descaradas mentiras à comissão, protagonizou há...

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O hoje famoso general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que está no olho do furacão na CPI da Pandemia no Senado por causa da sua desastrosa gestão da crise da covid-19 e suas descaradas mentiras à comissão, protagonizou há 16 anos, quando era tenente-coronel, uma história que à luz de hoje soa emblemática.

Conforme apurou o jornal O Estado de S. Paulo, o hoje general se divertiu com uma cena repugnante e racista. Puniu um jovem recruta de 19 anos, negro e evangélico, obrigando-o a substituir um cavalo de carga que arrastava uma carroça com uma banheira. Tudo isso perante as gargalhadas do quartel inteiro. Hoje, aquele jovem soldado prefere não falar daquela humilhação, que era uma antecipação do bolsonarismo violento e vulgar de hoje.

Talvez não tenha sido por acaso que aquele tenente-coronel que se divertia com o soldado negro substituindo o cavalo tenha acabado no Governo do capitão Bolsonaro, que já zombou dos quilombolas, os descendentes negros da escravidão que segundo ele “não trabalham e não servem nem para procriar”. Também o capitão reformado é hoje amante dos cavalos e das motos, os tronos de onde vomita sua violência e seu negacionismo.

Bolsonaro acaba de contagiar seus seguidores mais fanáticos com suas brincadeiras sobre as manifestações de sábado passado. Basta ver como, nas redes bolsonaristas, a marcha foi ridicularizada como sendo coisa “meia dúzia de gatos pingados”.

Um dia Bolsonaro sairá do poder e o Brasil poderá voltar a recuperar sua esperança de normalidade. O que não acabará tão cedo é o vírus que está inculcando na sociedade ao negar a realidade dos fatos. Dizer, por exemplo, que as manifestações gigantescas convocadas pelos movimentos sociais foram um fracasso só pode ser uma doença mental inoculada pelo capitão negacionista.

É uma doença que o mundo já sofreu com o nascimento do nazismo, que conduziu milhões a banalizarem o mal, confundindo a verdade com a mentira. São vírus malignos que não têm pai e que, quando parecem se dissipar, rebrotam de repente em todo o mundo, como está acontecendo com o ressurgimento dos movimentos negacionistas capazes de distorcer, nos limites do ridículo, a realidade das coisas. A mentira nesses movimentos neonazistas se eleva à categoria de dogma, e a verdade acaba sendo desprezada.

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Bolsonaro é um vírus que pode acabar infestando o país e transformando-o em cúmplice da sua insensibilidade e amor pela violência e pelo desprezo pela vida.

A mídia internacional, que têm os olhos voltados para a tragédia que aflige o Brasil, foi muito mais enfática que os grandes veículos nacionais em destacar a magnitude e a força simbólica das grandes manifestações contra Bolsonaro.

Será que o bolsonarismo negacionista está contagiando também veículos de comunicação que no passado eram elogiados como exemplo de jornalismo sério e responsável?

Seria triste e grave que o vírus anticultural e cego do bolsonarismo acabe contagiando o coração da democracia, que é a informação séria e responsável que sabe estar acima dos interesses de grupo.

No passado, os meios de comunicação sempre foram os melhores adversários das investidas golpistas e em defesa das liberdades, e por isso também os mais perseguidos nas ditaduras. O clima que o Brasil vive hoje não é o do pluralismo político e de ideias, cada dia mais castigado e desprezado por um Governo militarizado de ultradireita, com claros trejeitos nazifascistas, que a cada dia envenenam mais não só a democracia como também a convivência nacional.

Se as forças políticas democráticas, seja na CPI da covid-19 como no Congresso e no STF, esperavam um sinal que chegasse das ruas ocupadas pelo povo contra a opressão que a sociedade vive e o luto nacional que se torna cada dia mas prolongado e doloroso, já não têm desculpa para apear do poder, sem esperar mais, um presidente cego perante a realidade e cúmplice com a barbárie.

Melhor não esperar um manhã que poderia ser tarde demais para libertar o país não só do vírus da pandemia, mas do vírus que está corroendo as bases de uma democracia que o Brasil tinha conseguido com tanto esforço, como na famosa campanha das Diretas Já, um triunfo de uma democracia que hoje volta a estar ameaçada.

Enquanto um jovem negro continuar valendo menos que um cavalo de carga, não é de se estranhar a insensibilidade do bolsonarismo-raiz perante o genocídio que está sendo perpetrado, primeiro negando a pandemia, e depois desprezando a vacina. E não, não estamos diante de um novo fascismo. Trata-se, mais do que isso, de ressuscitar o nazismo que culminou com o maior holocausto de inocentes da história.

As manifestações de sábado não foram uma festa, e sim um luto nacional. Foram uma procissão de protesto e raiva, mas também de esperança. Foi a marcha silenciosa de um Brasil cansado de ver pisoteado seu direito à vida por um Governo que cultiva e banaliza a morte como uma mera fatalidade.

Se é emblemática a história do general Pazuello transformando o recruta negro em cavalo de carga, não menos relevante foi a cena do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, que no sábado das manifestações, encontrando-se não se sabe por que em Porto Velho, ao cruzar com a manifestação, de pé no carro, fez seu gesto favorito, o de disparar uma arma com a mão. Sempre a mesma coisa: armas, violência, provocação e gosto pela morte.

Por sorte este não é o Brasil verdadeiro, que luta e trabalha para sobreviver e poder celebrar a vida. Este não é o Brasil que no sábado passado saiu à rua para resgatar o país do inferno em que o vírus bolsonarista tenta lançá-lo. O grito de libertação da opressão bolsonarista ecoou no sábado em todo o Brasil e muito além das suas fronteiras como um dia de glória e de amor pela vida.

Que a marcha foi uma derrota do Governo é algo que ficou claro pelo comentário sarcástico do presidente, ao comentar que a manifestação tinha fracassado por “falta de maconha”. Não, a manifestação foi um triunfo da esperança e a favor da vida, palavras apagadas do dicionário de morte do bolsonarismo, que está rachando e começa a sentir a terra tremer sob seus pés.

Que voltem as manifestações, enquanto continuar a barbárie no poder. Que voltem respeitando os protocolos da pandemia para que as ruas e praças do Brasil sintam pulsar o calor do coração esperançoso do verdadeiro Brasil, já cansado de tanta violência e vulgaridade.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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