Por que Bolsonaro seria mais perigoso para a democracia em um segundo mandato?
Reeleito nas urnas poderia revelar-se desta vez com mais força a favor do autoritarismo político. Nele continua vivo o desejo de poder governar em plena liberdade sem levar em conta os demais poderes independentes
Jair Bolsonaro mudou ou está à espera da reeleição para impor seus sonhos até agora frustrados? Ou será que alguém ainda acredita que o mesmo Bolsonaro – aquele que opinou que a ditadura foi branda demais e que 30.000 pessoas deveriam ter sido assassinadas – se converteu repentinamente aos valores democráticos?
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Jair Bolsonaro mudou ou está à espera da reeleição para impor seus sonhos até agora frustrados? Ou será que alguém ainda acredita que o mesmo Bolsonaro – aquele que opinou que a ditadura foi branda demais e que 30.000 pessoas deveriam ter sido assassinadas – se converteu repentinamente aos valores democráticos?
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Será que o Bolsonaro violento, amante das armas, machista e homofóbico, que elogia torturadores e odeia as instituições, é uma pessoa que se converteu de repente? Por obra de quem? Algum milagre do céu?
Qualquer analista político sabe que essas conversões não existem, a não ser que sejam dissimuladas, à espera de retornar à sua própria natureza. Há quem creia, entretanto, começando por seus devotos mais fiéis, que o Bolsonaro de hoje já não é o que saiu vitorioso das urnas. E nas aparências é assim mesmo.
Ele tinha jurado guerra à velha política e prometido acabar com a corrupção e a violência. Já no poder, apareceu o Bolsonaro genuíno, que tinha passado quase 30 anos no baixo clero do Congresso. Nunca tinha brilhado nem aprovado uma lei importante. De sua passagem pela Câmara só ficam os rastros de seu amor pela violência, sua descarada homofobia, seus elogios públicos aos torturadores, seu desprezo pela mulher e por todos os diferentes. E por ter sempre negado que o Brasil seja um país laico. “E quem não gostar que vá embora”, gritou então, ameaçador.
Talvez fosse o caso de se perguntar por que as instituições não pediram sua condenação naquela época. Não lhe deram importância porque, sabe-se lá, o considerassem insignificante e sem poder. Talvez por isso nunca tenha aparecido envolvido em grandes corrupções, porque as grandes empresas sabiam que ele não tinha força para intervir nas leis e modificá-las.
Aquela lassidão das instituições, que riam das suas graças no Congresso e não foram capazes de levar a sério suas provocações, fez que um deputado sem história e um homem da violência chegasse à Presidência da República.
De fato, assim que foi eleito, começou a aparecer sua verdadeira personalidade de nostalgias ditatoriais. O Brasil viveu momentos perigosos, e chegou-se a pensar que se estava às vésperas de um golpe de Estado, para que ele não precisasse nem mesmo se dar ao trabalho de dialogar com as instituições e respeitar sua independência. Queria que estivessem submissas a seus desejos.
Assim, chegou inclusive a participar de manifestações violentas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual ameaçou fechar pela força militar. Ficará para a história aquele seu arrebato ao lado de seguidores fanáticos, quando gritou, ameaçador: “Porra, agora chega”. Um dia os historiadores explicarão como o Brasil esteve à beira de uma demolição autoritária das instituições.
A verdade pode ser que sua aparente conversão se deva mais ao temor de que algum entre dezenas de pedidos de impeachment armazenados no Congresso e os supostos escândalos de corrupção da sua família possam lhe custar o cargo.
É bem possível que esse medo o tenha levado a se refugiar na velha política, sobretudo com os partidos mais corruptos. E de repente, em vez de ameaçar mandar o Exército para tomar o Supremo, o vimos se ajoelhar perante os magistrados, a ponto de ir a uma festa na casa do então presidente do Supremo, Dias Toffoli, com direito a abraços e música ao vivo.
De ameaçar qualquer coisa que cheirasse a liberdades e direitos humanos passou a ser um presidente reverente pelas instituições, embora sem deixar a cada dia de soltar algum disparate, muitas vezes com linguagem soez e escatológica. O que não mudou foi o ódio e ameaças à imprensa, à qual culpa por todos os males do país.
Seria um grande erro político e um grande perigo para a democracia pensar que um personagem com tal ambiguidade e tal passado possa, se conseguir se reeleger em 2022, se manter fielmente devoto às instituições e defensor das liberdades.
Acredite-se ou não, o Bolsonaro reeleito nas urnas poderia revelar-se desta vez com mais força de desprezo pelos valores da democracia e a favor do autoritarismo político. Nele continua vivo o desejo de poder governar em plena liberdade sem levar em conta os demais poderes independentes. Ele carrega no sangue o repúdio por ter que se submeter aos rituais do poder que exige respeito às instituições que atuam como freio contra o autoritarismo.
É possível que um Bolsonaro reeleito volte amanhã para mostrar de novo seus dentes e sua convicção de que as instituições com sua independência são um estorvo ao poder total com que ele sonha.
Em um segundo mandato, poderá se sentir mais forte para enterrar para sempre o bárbaro assassinato da ativista política Marielle Franco e as sombras sobre o envolvimento de toda a sua família com as milícias. Pois se é verdade que Bolsonaro se converteu, por que não usa hoje seu poder para conseguir conhecer o mistério dos mandantes daquele crime que comoveu o país? Não tem agora a polícia sob seu poder?
Alguém acredita que em um segundo mandato Bolsonaro, o convertido, respeitará a plena liberdade de expressão e a independência dos meios de comunicação, aos quais continua perseguindo apesar de sua suposta conversão à democracia?
Não é preciso ser um gênio da adivinhação para ter certeza de que um Bolsonaro reeleito não poderia ser menos violento, mais devoto ao respeito das instituições, menos negacionista que hoje.
Bolsonaro hoje teve que mudar de pele, ou foi obrigado a mudá-la por militares convencidos de que ou aceitava os valores da democracia ou nunca mais seria reeleito. O novo convertido se ajoelhou de repente perante as instituições dado o temor de perder um poder com o qual sempre tinha sonhado.
Quem pode pensar que um Bolsonaro reeleito não tentará, por exemplo, mudar a Constituição para impor uma teocracia e acabar com o caráter laico do Estado, para poder governar com suas hostes evangélicas que mal suportam o laicismo? Ou que não tentará mudar as leis que regem as nomeações dos juízes do STF para refazer a corte à sua imagem e semelhança?
Sim, um Bolsonaro reeleito estimularia seus sonhos de transformar o Brasil em uma teocracia na qual assumiria todos os poderes e confirmaria seu sonho de “Deus acima de tudo”. Mas que Deus? Certamente não o dos Evangelhos, que abriu as portas do judaísmo para que nele coubessem até os gentios, em um abraço universal. Nem seria uma teocracia que colocaria os mais pobres e perseguidos no centro dos cuidados do Estado. Seria sem dúvida um Brasil pior do que hoje e mais afastado das grandes democracias do mundo.
Uma reflexão para que os partidos verdadeiramente democráticos estejam atentos a essa suposta conversão de Bolsonaro e se preparem para, abrindo mão de seus interesses particulares, serem capazes de evitar que o Brasil volte a cair nas mãos de um nostálgico das ditaduras.
Do contrário, parafraseando Reinaldo Azevedo, “o atual balido do cordeiro” poderia ser só “o futuro uivo do lobo”.