O virtual estará destruindo o conceito do sagrado?
Toda celebração supõe um contato físico. Quando brindamos, o ritual exige que as taças de cristal se beijem. O sagrado é corporal
Vivemos cada vez mais imersos no virtual em detrimento do contato físico. A pandemia nos aprisionou ainda mais neste frio mundo da virtualidade e nos roubou o prazer do abraço, do tato. E assim se destrói também o conceito do sagrado.
A passagem do tangível para o virtual, unida ao medo do contágio, está nos afastando do próprio coração da vida e de seu mistério. Toda celebração, de fato, supõe um contato físico. Quando brindamos, o ritual exige que as taças de cristal se beijem. O sagrado é corporal.
A importância do tato, do tangível, é tão ancestral no homem, e por isso tão distante do virtual, que não existem religiões nem ritos sem o contato físico. Os primitivos adoravam o cosmo, a natureza, e a revestiam de sacralidade. As ricas religiões da África, berço da humanidade, estão repletas de corporeidade. E até as mais modernas crenças monoteístas, da judaica à cristã, passando pela islâmica, baseiam seus rituais em objetos e contatos físicos.
Pode-se sacralizar uma pedra, uma árvore ou as águas de um rio. Difícil imaginar sacralizado um celular ou um computador. Uma vez em sua casa nas Ilhas Canárias, o Nobel de Literatura José Saramago me disse que ele era ateu, mas catava pedras do caminho e as colocava em sua mesa como se fossem objetos de culto. Descobria nelas uma certa sacralidade.
Não sabemos ainda que efeitos poderá produzir em nosso cérebro essa passagem tão radical do tangível para o virtual, intensificada mundialmente hoje pelo medo do contágio da doença. Saberão as novas gerações, e sobre isso deverá pesquisar a nova ciência do cérebro.
O medo do abraço entre corpo e espírito criou alienação e acabou matando a alma do sagrado. Nas religiões cristã e judaica, não existem ritos que não afetem o corporal. A tangibilidade é fundamental em todas as cerimônias religiosas. Beijam-se os textos sagrados. A Bíblia e os Evangelhos estão cheios de rituais que envolvem o contato físico. As bênçãos dos patriarcas eram realizadas colocando-se as mãos sobre a cabeça das pessoas. Nas cerimônias religiosas, os fiéis dão o abraço da paz.
As religiões podem cair na tentação de dar o passo do real para o virtual. Isso porque elas já são uma mistura de sagrado com político, onde o elemento político pesa cada vez mais. O sagrado não é concebível sem a materialidade e é antigo como a humanidade.
Os Evangelhos cristãos são povoados de sacralidade corporal. Jesus curava com as mãos, tocava os leprosos e se deixava perfumar os pés pelas prostitutas. Era tão sensível ao tato que, ao perguntar quem o tinha tocado, em meio a uma multidão que o rodeava, e respondendo os apóstolos que todos o estavam tocando, Jesus insistiu que alguém o tocara de um modo especial. Era uma mulher que sofria um fluxo de sangue.
Os ritos na Igreja são todos marcados pelo contato físico. Não existem sacramentos sem a corporeidade. Do batismo à eucaristia. O cristianismo é corporal. Jesus se despediu de seus discípulos com um jantar e um abraço. E sua morte foi o sacrifício de seu corpo e de seu sangue.
Será difícil para as religiões, todas elas, passar de sua realidade corporal para uma puramente virtual porque a essência do ser humano é a tangibilidade. Perguntem a um cego o que faria sem o tato. Perguntem a uma mãe como poderia amar virtualmente seu bebê sem tocá-lo.
Se é certo que a pandemia poderá levar a um aumento do trabalho realizado em casa, isolado dos outros, à distância, algo com que o capitalismo já está sonhando, será preciso se perguntar que consequências físicas e espirituais poderá provocar esse isolamento das pessoas que foram criadas para a convivência, para o afeto físico, para compartilhar as coisas, para se divertir e rezar juntas.
A ciência está hoje debruçada sobre os estudos do cérebro, e serão eles os que descobrirão que essa separação na vida humana do contato físico poderá criar novas patologias que ainda desconhecemos.
Nós, humanos, estamos hoje presos na luta para evitar maior carga de morte causada pela pandemia. Minimizá-la ou fazer piada com ela é assassino. Mas nossa luta deve ser, ao mesmo tempo, para que as forças do dinheiro não queiram se aproveitar da ocasião para nos venderem o novo deus do virtual, que nos converteria em frios robôs sem alma nem sentimentos. Não estaremos criando os novos demônios da solidão sacrificada no altar do puramente econômico?
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