Fake news mata
Cecília se debate, após a morte do pai por covid-19, com um sentimento de culpa por ter acreditado que a doença era só um “resfriadinho”. Milhares de mortes no Brasil precisam entrar nos registros como “vítimas de desinformação”
Esse foi o primeiro Dia dos Pais que Cecília Morais passou sem o seu, que morreu no dia 28 de maio, aos 63 anos, após ter sido infectado pelo coronavírus. Além do sofrimento provocado pela perda e intensificado por uma partida sem direito a ritual de despedida, Morais ainda se debate internamente com o sentimento de culpa. Perdida em uma guerra de narrativas, bombardeada por um excesso de informações nas suas redes sociais, ela não só foi induzida a acreditar que a covid-19 era um “resfriadinho”, como também orientou seus pais a deixarem de acompanhar os telejornais, que supostamente estariam aumentando a gravidade da situação por motivações políticas. Ela acreditou ainda que o chá de boldo preveniria a contaminação. Depois da morte do seu pai, Morais passou a desconfiar de tudo que chega no seu celular e a se perguntar se poderia ter prolongado a vida dele caso não tivesse passado essas informações enganosas adiante.
O Brasil atingiu a terrível e triste marca dos 100.000 mortos na última semana. E paira a dúvida: quantas pessoas, a exemplo do pai de Morais, não morreram também vítimas da desinformação? Quantas dessas mortes poderiam ter sido evitadas pelo simples acesso a informação de qualidade? E quantas mais irão morrer munidas de receitas “milagrosas” para combater o coronavírus, fake news que as fazem desrespeitar as normas médicas ou o negacionismo potencializado pelas teorias da conspiração?
Em live para o UOL, o médico e ex-ministro da Saúde José Temporão disse acreditar que “há uma contrapolítica de desinformação que cotidianamente cria confusão, equívoco e desmobiliza ações para salvar vidas.” Para Natália Pasternak, bióloga e criadora do Instituto Questão de Ciência, ao menos metade das mortes por covid-19 poderia ter sido evitada.
Em todo o mundo, o custo humano da desinformação tem sido altíssimo. No início de março, um vietnamita de 43 anos precisou ser internado após se automedicar com uma alta dosagem de cloroquina. No Irã, mais de 700 pessoas morreram de intoxicação por álcool após a disseminação de posts que associavam efeitos curativos ao produto. Nos Estados Unidos, um americano do Arizona morreu e sua mulher foi internada em estado grave após ambos tomarem cloroquina usada em limpeza de aquário, em uma tentativa de evitar a covid-19, após o presidente Donald Trump promover o medicamento como tratamento para o vírus.
A aliança CoronaVirusFacts, liderada pela International Fact-Checking Network, que reúne 70 agências de checagem de 40 países diferentes, bateu a marca de 7.100 desmentidos sobre o novo coronavírus. A colaboração começou em janeiro, quando vírus e suas fakes começaram a se espalhar na China.
No Brasil, estudo conduzido pelas pesquisadoras Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo (Ensp/Fiocruz) apontou as principais redes sociais propagadoras de notícias falsas sobre o novo coronavírus no Brasil. Os dados revelam que 40,7% das informações falsas foram propagadas via WhatsApp, 33,3% no Facebook, 8,5% no Instagram, 7,4% no YouTube, 5,3% em sites, 2,6% no Twitter e 0,5% via SMS. A pesquisa apontou ainda que maioria das fake news compartilhadas ensina métodos caseiros para curar a covid-19 e/ou afirmam que o coronavírus foi criado em laboratório. Segundo o estudo, 15,9% das fakes se referem à covid-19 como uma farsa.
Em um paper (ainda não revisado por pares), Ciara M. Greene e Gillian Murphy (University College Dublin e University College Cork) mostram que a exposição à desinformação foi associada a mudanças pequenas, mas significativas no comportamento offline. Essas variações nos hábitos podem ser ainda maiores após múltiplas exposições a uma história falsa.
O que deveria mudar então para que os usuários de redes sociais obtenham informações confiáveis, oportunas e relevantes em primeira mão? Assim como a pandemia, a crise de desinformação é global e complexa, por isso todo o cuidado é pouco enquanto ainda estivermos sendo bombardeados por curas milagrosas, notícias alarmantes e promessas duvidosas. Soluções rápidas não existem nem para o coronavírus nem para a desinformação. Afinal, fake news mata; e a vítima pode ser uma das pessoas que você mais ama.
Alana Rizzo e Clara Becker são jornalistas e cofundadoras do Redes Cordiais, projeto de combate à desinformação e aos discursos de ódio em redes sociais.
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