A luta dos entregadores de aplicativo contra os algoritmos autoritários

Uber, Rappi, Ifood, Loggi e outras exercem um gerenciamento algorítmico obscuro, impondo arbitrariedades na definição do ritmo e valor do trabalho

Motociclistas fazem protesto na Av. Paulista durante a paralisação dos entregadores de aplicativos, em 1º de julho de 2020.Renato Maretti

Na contramarcha da tristeza política que hoje assola o Brasil, a luta iniciada pelos entregadores de plataformas de aplicativo tem emergido com uma força especial. Símbolo do capitalismo desregulado, financeiro e de serviços, de estrutura leve e lucros abissais, as poucas empresas de aplicativo que controlam esse mercado encontram resistência por parte de trabalhadores auto-organizados que se mobilizam contra condições precárias de trabalho.

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Absorvendo uma grande quantidade de trabalhadores recentemente desempregados, ou que já se encontravam na informalidade as empresas Uber, Rappi, Ifood, Loggi e outras menores, exercem um gerenciamento algorítmico obscuro e autoritário, impondo arbitrariedades na definição do ritmo, área de deslocamento, quantidade e valor do trabalho, sem reconhecimento de vínculo para negar direitos e possibilitar emprego pago por tarefas, com pagamento menor que o salário mínimo.

Sem possibilidade real dos entregadores regularem de forma autônoma o trabalho, como as empresas argumentam que acontece —porque não se adequam ao ritmo imposto de longas jornadas de trabalho, as perdas e represálias dos aplicativos tornam o trabalho não rentável—, a resposta tem sido a organização de protestos. Uma primeira paralisação dos entregadores no dia 1 de julho, conhecida como #BrequeDosApps, foi realizada com travamento em locais de saída de pedidos, mobilização na cidade, e uma importante quantidade silenciosa de entregadores que nesse dia não ligaram o aplicativo.

A segunda paralisação nacional foi marcada para este sábado dia 25 de julho, também em várias cidades. Na primeira edição houve mobilizações e boicotes também em Argentina, México, Chile e Equador, configurando já uma articulação internacional que enfrenta condições de trabalho parecidas. Nas duas paralisações, houve envolvimento de usuários, que boicotaram os aplicativos com avaliações negativas que baixaram consideravelmente sua “nota” nas plataformas de download. Vários restaurantes operaram sem encaminhar entregas com empresas de aplicativos.

As reivindicações dos entregadores buscam o aumento das taxas mínimas e por quilômetro, além do fim dos bloqueios indevidos e a demanda de auxílios ou licenças de saúde, acidente e distribuição de EPIs, que foi limitada. Com foco nas taxas, os entregadores apontam a valorizar o próprio trabalho, que tende a diminuir com a alta procura desta forma de renda, mesmo com um aumento considerável do lucro dos aplicativos. Frequentes penalidades econômicas, suspensão do cadastro ou dispensa sem justificativa nem claridade, acompanham a falsa ideia de parceria, na falácia de uma economia de compartilhamento que só compartilha com os trabalhadores os custos da sua própria manutenção e do equipamento necessário para realizar as entregas.

A força autônoma por trás da organização dos protestos se conhece como Entregadores do Breque, formada por Motoboys e Bikers que destacam não manter vínculo com partidos e sindicatos. Os bolsões onde se esperam os pedidos, os grupos de Whatsapp onde são trocadas informações sobre condições de trabalho e da rua, e a circulação na cidade com adesivos e panfletos nas bags que os entregadores mesmos tem que providenciar para trabalhar, tem funcionado como espaços de organização e modo de divulgar os protestos.

A forma de organização das paralisações responde às características determinadas por este trabalho, como fluxo contínuo de entregadores dispostos a divulgar as demandas e perder um dia para se opor à lógica imposta. É o próprio trabalho do chamado capitalismo de plataforma que configura um enxame de trabalhadores sempre disponível como força a disposição das empresas de aplicativos para substituir os entregadores quando estes não podem trabalhar, numa lógica perversa de descarte frente a doenças e acidentes, veículo não preparado para se arriscar pelo mal tempo, falta de conexão, negativa de trabalhar quando não tem demanda, etc.

No enorme gasto em publicidade que em parte responde ao Breque Dos Apps, as empresas se apresentam como solidárias, preocupadas com os entregadores e dispostas a ouvir demandas. Na realidade, elas negam assistência e cuidado, por exemplo, derrubando decisões do MPT que obrigava Rappi e Ifood providenciar elementos de proteção na pandemia. As próprias regras de cada aplicativo mostram uma lógica cruel. A Rappi impõe um sistema de pontuação que obriga a trabalhar em determinado ritmo, dias, regiões, sob pena de descontinuar os pedidos ou chamados nas melhores regiões. A empresa Ifood organiza os entregadores em duas categorias: uma mais livre (“nuvem”) que é punida com escassez de pedidos, outra de “operadores logísticos” (OL), na qual para receber pedidos é preciso cumprir horário e responder a subordinação de chefia.

Forçando o algoritmo de valores, cadastros e avaliações para criar condições de superexploração, especulando com a necessidade dos que precisam trabalhar mesmo com um valor de taxa de menos de um real por quilômetro rodado, as empresas obrigam a extensas jornadas para compensar o gasto dos deslocamentos e outros custos, compra e manutenção do veículo, etc, arcados pelo entregador. Uber Eats, exige trabalhar a cegas, sem saber a qual lugar o entregador será enviado, impedindo a decisão de aceitar um pedido, que em outros apps é permitida, mas acarreta punição. Trabalhar como entregador hoje exige horas de tentativas de falar com o suporte, dívidas e suspensões impostas por problemas dos aplicativos, dos clientes e dos estabelecimentos comerciais.

No desenrolar da luta dos entregadores, a imprensa, os partidos e as instituições reagiram. A esquerda partidária fez movimentos para chamar essa luta de sua. O Coletivo de Entregadores Antifascistas, que apoia o Breque, contribuiu nesta direção, a partir da presença nas redes sociais e realização de grande quantidade de conversas ao vivo com mídia, pesquisadores e representantes políticos ou candidatos desse campo. O grupo foi formado quando se popularizou nas redes sociais um meme em que as pessoas declararam que suas profissões ou atividades eram “antifascistas”, na época em que esta denominação veio a tona nos protestos anti racistas em Estados Unidos contra a violência policial e coincidindo com os protestos “antifascistas” contra Bolsonaro da esquerda de São Paulo, no começo de Junho.

Mas a identidade ou afinidade com a esquerda partidária está longe de ser o que prevalecia entre os entregadores que organizaram as paralisações, assim como dos milhares que somando no movimento ou desligando o aplicativo nos dias dos protestos, aderiram ao Breque dos Apps. Pela sua forma auto-organizada e selvagem, a greve dos entregadores lembra em parte a mobilização dos caminhoneiros de 2018. Também às jornadas de Junho de 2013, que paralisaram a cidade contra o aumento da tarifa do transporte e abriram um período político ambíguo.

Na luta dos entregadores, entre a primeira e a segunda paralisação teve lugar a intervenção de grupos de direita que atuam em redes sociais. Em um contexto diferente ao de antes da chegada ao Governo, no entanto, a direita se posiciona de forma externa ao movimento, oposta à paralisação dos entregadores. Numa linha parecida à que empresas de aplicativos têm usado como estratégia em outros países do mundo, forte investimento em redes sociais apresenta o Breque dos Apps como contrário aos interesses dos entregadores (“Não Breca Meu Trampo”), buscando também associar os protestos à esquerda e ao sindicato como forma de debilita-los.

No centro da discussão, aparece o debate sobre a possível formalização e regulamentação da atividade. Depois do primeiro Breque, deputados protocolaram projetos e o sindicato do setor (SINDIMOTO-UGT), movimentou processos no Tribunal de Trabalho, com a perspectiva anunciada de buscar o reconhecimento no marco da CLT para os entregadores de aplicativo. Essa bandeira, usada também para desmobilizar e de inverossímil consecução, levanta entre entregadores a suspeita de que teria como resultado dificultar o acesso ao trabalho e a perda da flexibilidade, sem aumentar renda. Por ser contrária à lógica que organiza essa economia, uma formalização provavelmente apenas alimente negociações eternas e carreiras de intermediários políticos que, como os aplicativos, se mostram como mediação indispensável, mas não levam a nada ou mantém igual a exploração.

O presidente da Câmara de deputados, Rodrigo Maia (DEM), realizou uma reunião com entregadores de todo o país convidados pelo PSOL. A deputada Tábata Amaral (PDL) com apoio da Fernanda Melchionna (PSOL) apresentou um projeto que regulariza todas as possíveis atividades “sob demanda”, buscando impor obrigações pontuais para as empresas de plataforma, mas levando também à possível legalização de um trabalho mal remunerado. Condições precárias de trabalho numa falsa autonomia, ou formalização de um trabalho também precário, com risco pago pelo trabalhador, a força dos entregadores tem sido encontrar formas de pressão direta sobre a distribuição do lucro e a imagem das empresas.

A auto organização e luta dos entregadores tem conseguido visualizar o conflito com empresas que preferem inviabilizar os trabalhadores na promoção de uma marca que se apresenta como facilitadora do consumo direto entre estabelecimentos comerciais por parte de clientes, ou que esconde a dívida do trabalho não pago no discurso da ajuda para entregadores acidentados e empreendedorismo de oportunidade. Também na transferência do custo do trabalho à caridade da gorjeta dos clientes, que ainda algumas empresas de apps não repassam integralmente aos entregadores.

No momento em que a guerra entre os entregadores e os aplicativos do capitalismo de plataforma está declarada, a ampla adesão à greve se mostra como melhor resposta ao trabalho precário que, com cumplicidade do Estado, é imposto para além de qualquer legislação, pela capacidade tecnológica de administrar milhões de entregas com poucas empresas, determinando taxas no limite do possível. Essa lógica é questionada pelos entregadores que na direção de brecar a cidade constroem a forma de ultrapassar as atuais imposições, encontrando nesse caminho um novo lugar onde se posicionar.

Salvador Schavelzon é antropólogo, professor na Universidade Federal de São Paulo e autor de El nascimento del Estado plurinacional de Bolívia, versão de sua tese de doutorado.

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