Ferrogrão, um trilho de ilusão
Projeto considerado estratégico pelo Governo brasileiro subestima impactos socioambientais em uma das regiões mais ameaçadas da Amazônia
O projeto de ferrovia EF-170, apelidada Ferrogrão, pretende se instalar em uma das regiões mais diversas e ameaçadas da Amazônia brasileira, fechando os olhos para o complexo contexto de conflitos socioambientais ao longo de seu traçado. Considerada uma prioridade nacional pelo Governo federal, que tem utilizado o projeto como vitrine do novo programa de investimentos do país, a estrada de ferro é rodeada de incertezas e ilusões.
Com quase 1.000 quilômetros de extensão, partindo de Sinop (MT) e até o porto de Miritituba (PA), o projeto vai se instalar no interflúvio das bacias dos rios Xingu e Tapajós, visando a consolidação do novo Corredor Logístico de Exportação de commodities na Amazônia. A construção da ferrovia deve acirrar os conflitos fundiários e potencializar os impactos socioambientais associados ao desmatamento e à invasão de Terras Indígenas e Unidades de Conservação ao longo de seu trajeto.
A região de interflúvio Tapajós-Xingu é uma das áreas mais pressionadas pelo desmatamento na Amazônia. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) revelam que cinco das dez Unidades de Conservação mais desmatadas em 2020 estão ali, sendo que a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, responde pelo primeiro lugar no triste ranking. O mesmo acontece com os municípios mais desmatados: cinco dos dez mais devastados no período estão na região.
O município de Novo Progresso, que está entre os mais desmatados de 2020, virou manchete internacional no ano passado por ser palco do “Dia do Fogo”, origem das queimadas criminosas na Amazônia. Na região também existe uma movimentação para apoiar o enfraquecimento da proteção e a redução de Áreas Protegidas, como o Parque Nacional do Jamanxim, quinta UC mais desmatada neste ano, e que teve uma porção de seu território reduzido para viabilizar a passagem da Ferrogrão. A redução ilegal dessa área de proteção integral é uma das causas da judicialização do projeto da Ferrogrão.
Em Mato Grosso, a região de produção agrícola de Sinop também é uma das maiores frentes de desmatamento da Amazônia. O desmatamento ilegal em áreas de remanescentes florestais tem se intensificado desde 2018 e cerca de 40% das nascentes do rio Xingu já foram destruídas. Entre 2012 e 2017, mais de um quarto do desmatamento no Estado ocorreu no interior de fazendas de soja, sendo 95% ilegal, à revelia da Moratória da Soja.
Com a Ferrogrão, esse cenário deve se agravar. Simulação realizada pela Climate Policy Initiative revelou que a expansão da fronteira de produção nos municípios mato-grossenses beneficiados pela eventual redução do custo de transporte induzirá o desmatamento de ao menos 204.000 hectares de floresta, equivalente a um custo de quase US$ 1,9 bilhão em emissões de carbono.
A previsão da construção do terminal ferroviário em Matupá deve impulsionar a utilização da MT-322 e a construção da ponte sobre o rio Xingu na estrada cujo trecho de 80 km está dentro do território do povo Kayapó (TI Capoto Jarina) e o Território Indígena do Xingu. A MT-322 corta no sentido leste-oeste o corredor de 26 milhões de hectares de floresta contínua entre os Estados de Mato Grosso e Pará, que abrange 21 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação.
A ilusão da sustentabilidade da Ferrogrão se finda no momento em que o contexto socioambiental e fundiário da região é revelado. Diante da ameaça ao seu território, povos indígenas do interflúvio do Tapajós-Xingu têm se mobilizado de forma ininterrupta desde o anúncio dos estudos do projeto, em 2016, pelo direito de serem consultados.
Em 2017, o Governo, já notificado pelo Ministério Público Federal sobre a obrigatoriedade da realização da Consulta Livre Prévia e Informada (CLPI) com os povos indígenas e comunidades tradicionais, se comprometeu em audiência pública a realizar a consulta antes de encaminhar o plano de concessão e leilão da ferrovia. O Governo não cumpriu sua promessa e em 2018 deu início ao licenciamento ambiental da ferrovia sem previamente ter discutido os estudos de viabilidade técnica do empreendimento com índios e comunidades tradicionais, ignorando os povos Indígenas Kayapó, Panará, Kayabi, Yudjá, dentre outros, nos estudos de impacto ambiental da ferrovia e privando os indígenas de seu direito a CLPI.
Fruto do interesse manifesto de um consórcio de tradings internacionais e nacionais de commodities agrícolas, a EF-170 entrou para a agenda governamental como um investimento estratégico para o agronegócio brasileiro. Em seu afã para convencer investidores, o Governo e grupos interessados têm se engajado em um discurso de sustentabilidade do investimento.
Mas por trás da narrativa “sustentável” o Governo tem se aproveitado das limitações formais da legislação ambiental brasileira, valendo-se da Portaria Interministerial no 60/2015, que limita a avaliação de impactos socioambientais a uma faixa de 10 km de cada lado da ferrovia. Com isso, o Governo se prende a uma norma de frágil justificativa técnica para ignorar, de forma legal, a real extensão dos impactos do empreendimento, que vão recair sobre diversas Terras indígenas e Unidades de Conservação, além de desrespeitar o pleito de povos indígenas pelo cumprimento de seus direitos de consulta.
A opção escolhida tem sido abafar o contexto socioambiental da região e tocar o projeto de investimento à revelia das diversas denúncias já realizadas por povos do Xingu e do Tapajós, assegurando, inclusive, um teto insuficiente para os gastos com medidas de compensação e mitigação de impactos socioambientais, e estipulando que tudo o que exceder a esse valor será arcado pela União. Ou seja, são os brasileiros que vão pagar os custos socioambientais não dimensionados de um empreendimento privado cujo passivo necessariamente recairá sobre os cofres públicos.
O suposto ambiente de segurança jurídica que o Governo brasileiro diz assegurar aos potenciais investidores é uma quimera. A incerteza sobre impactos e as dimensões das afetações socioambientais do empreendimento a que os povos indígenas e ribeirinhos do interflúvio Tapajós-Xingu estão submetidos necessariamente impacta a avaliação de risco do projeto, cuja concessão é de 65 anos. A ilusão da Ferrogrão poderá custar muito caro para o presente e futuro de gerações de brasileiros, e sobretudo para os povos da floresta amazônica.
André Villas Bôas é secretário executivo da Rede Xingu +, articulação de 22 organizações de povos indígenas, ribeirinhos e sociedade civil aliadas para a defesa do Corredor Xingu (www.xingumais.org.br).
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