O Fellini que eu conheci
Ver Fellini filmando no auge da carreira é uma das coisas que nunca se apagaram da minha memória. Era uma festa
No próximo dia 20, o cineasta Federico Fellini completaria 100 anos.
O mundo inteiro começa a ressuscitar e celebrar esse gênio do celuloide, que atravessou as fronteiras de seu país para se transformar num personagem mundial, com seu neorrealismo e suas obras imortais.
O jornal me pediu que contasse algumas histórias de meus numerosos encontros com o diretor durante meus 18 anos como correspondente na Itália. A verdade é que cada encontro com ele acabava sendo uma epopeia. Porque Fellini se empenhava em dizer que ele não existia, que os jornalistas o tinham inventado. Era tímido como um adolescente e cheio de rituais. Por exemplo, era quase impossível que se dispusesse a conceder uma entrevista sem antes lançar mão de dois apetrechos dos quais não se separava nem no verão: um chapéu de feltro e um cachecol de lã. Sem eles, dizia, sentia-se nu. Sua timidez o levava às vezes a desconcertar os jornalistas jovens com seus rompantes. Lembro que ele alfinetou um desses repórteres, que o entrevistava para a RAI TV, logo após a primeira pergunta: “E ainda lhe pagam para fazer essas perguntas estúpidas?”
Essa cena se repetiu comigo, já jornalista veterano, quando ele marcou um encontro, após mil dificuldades, numa sala imensa de Roma. O jornal havia me pedido a entrevista para uma reportagem do suplemento de domingo, sobre os desenhos que um amigo de Fellini tinha preparado para um filme que se passaria no México e que nunca viu a luz.
O EL PAÍS mandou um fotógrafo de Madri. Sua tarefa, que se revelou hercúlea, era conseguir uma foto das caras juntas de Fellini e do desenhista. Algo quase impossível. O diretor combinou de se encontrar conosco num estúdio do centro de Roma, abarrotado de gente sua. Começou, como sempre, colocando dificuldades. Primeiro mandou que trouxessem o chapéu e o cachecol. Depois queria que na foto figurasse toda aquela gente sua. “Assim, todos juntos”, dizia. Suamos para convencê-lo de que tinha que ser uma foto só com as duas caras juntas. “Isso nem pensar, vamos parecer dois maricas”, falou prontamente. Quando por fim cedeu após muitas tentativas, e o fotógrafo conseguiu colocá-los juntos, Fellini se apaixonou pelos sapatos do meu colega. Perguntou-lhe onde os havia comprado. “Nos Estados Unidos”, respondeu. E Fellini: “Então já não gosto deles.” O fotógrafo, desesperado, aproveitou a distração e conseguiu a tão trabalhada foto.
Havia chegado a hora nada fácil da entrevista. Fellini queria fazê-la com todas aquelas pessoas e aquela confusão do camarim. Eu lhe disse que assim não seria possível, e ele então marcou comigo no dia seguinte, em outro lugar, às nove da manhã. Eu tinha medo de que ele não aparecesse. Esperei uma meia hora, e por fim apareceu com o chapéu e o cachecol. Sentamos ao redor de uma mesa enorme. Fellini tinha em sua mão um lápis e algumas folhas em branco. Parecia que era ele o entrevistador. Me disse que não poderia gravar. Fiz apenas anotações. E, já na primeira pregunta, mandou: “Puxa, que pergunta idiota!” Eu estava interessado em saber como nasciam os títulos tão originais de suas obras, e disse que o importante era que a resposta fosse inteligente. Sem me olhar, ele começou a rabiscar numa folha em branco. Depois levantou a cabeça e me explicou com calma, magistralmente, como nasciam os títulos das suas obras. Me explicou que nunca os tinha de antemão. Que começava a rodar e que o nome ia sendo engendrado nele como a criança no ventre da mãe, até nascer com sua personalidade.
Naquele entrevista, Fellini me contou um segredo: sua primeira vocação não havia sido o cinema, mas os desenhos animados. Quando criança, ele gastava todo o dinheiro que lhe davam em casa numa banca próxima para comprar gibis.
No meio da entrevista, o cineasta disse que não tinha mais nada a dizer e chamou seu secretário, um gordinho rechonchudo chamado Vicenzino, para que a prosseguisse com ele. Precisei usar toda minha experiência de jornalista veterano para convencê-lo de que outro dia entrevistaria Vicenzino, mas que agora queria conversar somente com ele.
Um dia, Fellini me deu um presente. Me deixou assistir, no Cinecitá de Roma, à rodagem de algumas cenas de seu terno filme Ginger e Fred. Ele havia convocado uma série de anões que atuariam no filme. Foram tantos que aquilo mais parecia uma reunião da categoria. O diretor tinha que escolher, e os anões se agarravam a ele suplicando. Fellini sempre foi enormemente humano, e talvez por isso parecesse um adolescente. Pude ver o carinho que dedicava àqueles anões. E ele me contou que costumava usar mulheres gordíssimas em seus filmes porque sua primeira experiência sexual, quando adolescente, foi com uma mulher muito gorda —e desde então tinha muito respeito por elas.
Ver Fellini filmando no auge da carreira é uma das coisas que nunca se apagaram da minha memória. Era uma festa.
Ele era tão tímido, e os jornalistas lhe davam tanto medo, que foi muito difícil levá-lo para a Stampa Estera, onde eu e outros 40 correspondentes trabalhávamos juntos, como as outras personalidades que costumávamos convidar para discussões. Por fim, numa tarde Fellini cedeu e anunciou que iria. Todos nós o esperamos numa sala. Ele demorava a chegar, e imaginamos o pior: que ele tivesse se arrependido. Saí por um instante, fui até o bar ao lado do edifício e ali o encontrei já de chapéu e cachecol, com algumas moedas na mão para dar um telefonema. Me apresentei e disse que os correspondentes o esperavam. “E eu estou telefonando para dizer que não vou porque, realmente, não tenho nada de novo para dizer a vocês.” Finalmente o levei à Stampa Estera.
Como sempre, ele começou explicando que já tinha dito tudo em seus filmes. Bastava vê-los e saberíamos tudo sobre ele. Meu colega Domenech, então correspondente da revista espanhola Interviu, quebrou o silêncio e lhe disse algumas coisas que havia visto em seu último longa E La Nave Va. Quando Domenech terminou, Fellini respondeu irônico: “Que maravilha. E eu sem saber que havia querido dizer todas essas coisas!”.
Numa manhã, quando foi publicado um livro que reunia várias entrevistas com ele, nós lhe perguntamos o que tinha achado. Respondeu: “Maravilhosas todas, porque Fellini não existe. Muita fantasia têm os jornalistas. Cada um criou um Fellini à sua medida”. Assim era ele, genial, tímido, humano, desapegado até de sua obra e um dos maiores do cinema mundial.
Dizem que cada cineasta tem um filme que o tornou famoso. Com Fellini é difícil fazer esse exercício, já que cada uma de suas obras poderia ser a melhor. Quem poderia dizer que Amarcord é melhor que A Doce Vida? Ou que Roma de Fellini? Ou Oito e Meio? Ou Noites de Cabíria? Ou A Estrada da Vida? Ou Casanova de Fellini? Ou o terno Ginger e Fred? Ou A Voz da Lua? Ou E La Nave Va?
Dizem que Fellini era o mais italiano do imenso conjunto de cineastas de seu tempo. Sem dúvida era o mais original. E isso que com ele, naqueles anos, pululavam cineastas também imortais como Pasolini, Visconte, Rosellini, Zeffirelli, Antonioni e Bertolucci. Foi a época de ouro do cinema italiano, que conseguiu conquistar o mundo. Ter podido conhecê-los e entrevistá-los é um dos maiores presentes do meu trabalho como correspondente em Roma.
E se Fellini era para mim o mais original, Pasolini era um gênio da inteligência, multifacetado porque era também poeta, semiótico, escritor, político crítico e profeta até de sua própria morte violenta. Homossexual como era, durante um jantar em Assis estava rodeado de mulheres extasiadas por escutá-lo. Num momento me confiou: “E pensar que morrerei sem conhecer a alma feminina”. Era um libertário que conseguia ser adorado por todos. E curioso como um gato.
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