_
_
_
_
_
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

China é a maior beneficiada das tensões entre Trump e Irã

Conflito com o Irã pode colocar a perder o único acerto diplomático do presidente americano, facilitando a estratégia chinesa de se projetar como alternativa benigna aos EUA

Presidente Donald Trump durante visita a Ohio, nos Estados Unidos.
Presidente Donald Trump durante visita a Ohio, nos Estados Unidos.JONATHAN ERNST (Reuters)
Oliver Stuenkel

Desde que se tornou presidente dos Estados Unidos, Donald Trump não alcançou nenhuma grande vitória na política externa. Pelo contrário: a aproximação com a Coreia do Norte fracassou, Washington deixou de ter um papel relevante nos debates sobre os dois maiores desafios atuais — mudança climática e migração — e nem os principais aliados dos EUA confiam em um presidente que, durante a campanha, prometia “tantas vitórias que os americanos vão até cansar de ganhar”. Edward Luce, correspondente em Washington do jornal britânico Financial Times, escreveu recentemente que Trump era uma “ameaça à paz mundial”, acrescentando que o presidente americano não via “limites legais ou morais para suas ações, incluindo crimes de guerra”.

Mais informações
Apoyo al general Soleimani en Yemen.
Assassinato de Soleimani abre debate jurídico nos EUA sobre os limites da “guerra ao terror”
Ciudadanos iraníes portan el féretro de Qasem Soleimaní, en la ciudad de Mashhad, Irán.
Irã anuncia quebra de acordo nuclear
El General Qassem Soleimani en una foto de archivo de 2016
EUA matam o poderoso general iraniano Soleimani em um ataque no aeroporto de Bagdá

Porém, mesmo seus críticos reconhecem que Trump acabou ajudando a sociedade americana a priorizar o debate público sobre como lidar com a ascensão da China. Ainda que de um jeito tosco e contraproducente, o presidente conseguiu fazer os Estados Unidos perceberem que a escalada chinesa era o principal desafio de política externa dos EUA, muito mais relevante para o país do que qualquer outro conflito, seja no Oriente Médio, na Ucrânia ou no Afeganistão. De fato, pode-se afirmar que o maior erro da atuação externa americana nas últimas duas décadas foi seu envolvimento em conflitos no Afeganistão e no Iraque. Além de sangrentos e fúteis, esses confrontos tiveram pouca importância estratégica para Washington, desviando uma atenção que podia ter sido dedicada a elaborar uma estratégia mais sofisticada em relação à ascensão do Reino do Meio. No futuro, historiadores se perguntarão como um país que ainda era a maior potência do período foi tão míope a ponto de se envolver em guerras caríssimas e sem impacto sistêmico enquanto uma nova superpotência capaz de ultrapassá-lo despontava a olhos vistos. Enquanto os ataques de 11 de setembro de 2001 e a chamada “Guerra ao Terror” não passarão de notas de rodapé na história do século 21, a volta da China ao centro do mundo provavelmente será um de seus temas centrais.

Barack Obama até entendeu essa realidade, mas não foi capaz de encerrar o envolvimento militar americano em conflitos secundários, tornando-se o primeiro presidente dos EUA a passar todos os oito anos de mandato em guerra — um triste recorde que os nostálgicos pelo líder democrata tendem a esquecer. Trump foi mais perspicaz nesse sentido, mas agora periga ceder ao mesmo erro, pondo a perder seu único acerto diplomático.

Se nas duas décadas passadas os líderes chineses ficaram contentes em ver seu maior rival ocupado em conflitos de baixa relevância — dos quais Pequim sabiamente manteve distância —, eles agora devem torcer pelo mesmo erro de cálculo em relação ao Irã. Afinal, a China seria a maior beneficiária de um confronto militar entre os Estados Unidos e o país persa. Dada a sofisticação das Forças Armadas iranianas, esse confronto provavelmente seria mais caro, longo e complexo do que aqueles travados contra o Iraque ou Afeganistão. Mesmo diante da possibilidade de um rápido colapso do governo de Teerã, os Estados Unidos teriam uma responsabilidade na reconstrução do país, e ficariam amarrados por anos à região. No campo diplomático, os prováveis abusos de direitos humanos, mortes de civis e possíveis crimes de guerra cometidos por soldados americanos aumentariam a rejeição e o isolamento dos Estados Unidos. A grande maioria da comunidade internacional se recusaria a apoiar os EUA em um conflito que muitos enxergariam como ilegal e desnecessário.

Uma guerra assim produziria uma inevitável onda de sentimento global anti-americano, permitindo um fortalecimento da narrativa de Pequim, que busca colocar a China como uma alternativa benigna, confiável e pacífica aos Estados Unidos: potência em declínio, instável, agressiva e ressentida por sua perda de hegemonia. Com a atenção pública global focada no conflito com o Irã, a China sentiria ainda menos pressão diplomática em relação aos abusos de direitos humanos em Xinjiang e à repressão em Hong Kong.

Um ataque americano ao Irã tampouco estancaria o avanço dos interesses chineses no Oriente Médio. Nos casos do Iraque e do Afeganistão, o que vimos é que a China conseguiu fortalecer sua presença econômica e diplomática mesmo com governos instalados por Washington após as invasões. Embora a imprensa americana insista em enfatizar a influência iraniana no Iraque, a notícia mais importante do ano passado foi a decisão do governo iraquiano de integrar a Nova Rota da Seda (conhecida como BRI), plano de desenvolvimento global do governo Xi Jinping do qual o Afeganistão também já faz parte. Os EUA gastaram cerca de dois trilhões de dólares em dezoito anos de ocupação no Afeganistão mas é a China que terá a maior influência econômica no país, já sendo sua principal investidora.

A decisão recente de Trump de impor novas sanções ao regime iraniano aumenta consideravelmente a influência econômica da China, principal parceira comercial do Irã. Durante uma visita do ministro das Relações Exteriores iraniano Javad Zarif a Pequim em setembro de 2019, o governo chinês anunciou um pacote de investimentos de 400 bilhões de dólares: o maior na história dessa relação bilateral. Assim como aconteceu no caso venezuelano, as sanções de Trump têm facilitado o projeto chinês de aumentar sua influência econômica, uma vez que retiram a concorrência imposta por empresas americanas.

Após o assassinato do general Soleimani pelos EUA no começo de 2020 e da retaliação iraniana subsequente, o cenário mais provável não é de um confronto militar clássico, como ocorreu no Iraque em 2003, mas de um conflito assimétrico de baixa intensidade. Isso deve envolver ataques a instalações militares e postos diplomáticos americanos no Oriente Médio, ciberataques a instituições financeiras dos EUA e apoio a grupos que lutam contra aliados de Washington, como os rebeldes houthis no Iêmen, dificultando a atuação dos Estados Unidos na região. A crise, porém, aumentou as chances de que algum erro de cálculo acabe levando a uma invasão dos EUA no Irã.

Sendo assim, a decisão de matar Soleimani — segundo homem mais poderoso do Irã e uma figura que muitos viam como um possível candidato à presidência em eleições futuras — ameaça a única ideia positiva que Trump articulou para a política externa americana: a de se retirar de guerras desnecessárias e finalmente focar-se inteiramente na necessidade de articular uma estratégia mais coerente para lidar com a ascensão chinesa.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_