Desafio britânico para distribuir vacina passa por evitar roubos e manter geladeiras a 70 graus negativos
Centros médicos foram orientados a se prepararem para distribuir imunização a partir do dia 14 de dezembro. Devido a problemas logísticos, lares de idosos já não devem ser os primeiros a receber o tratamento
A partir desta semana, o Reino Unido enfrenta o desafio crucial de passar da propaganda para a realidade. O resto do mundo observará com atenção os acertos, mas sobretudo os erros, do Governo de Boris Johnson, na sua aposta em ser o primeiro a implementar uma campanha maciça de vacinação contra a covid-19. O Exército britânico começou a realizar um ensaio de distribuição do tratamento, batizado de “Operação Panaceia”, quando tomou conhecimento de que a autoridade nacional reguladora dos medicamentos (MHRA, na sigla em inglês) havia dado o sinal verde, na última quarta-feira, para a vacina da Pfizer e da BioNTech. O exercício-piloto foi realizado no estádio Ashton Gate, em Bristol. É um dos grandes espaços designados para um desafio logístico que envolve o transporte do medicamento desde o continente europeu até a ilha, seu armazenamento em instalações de localização não revelada ao público e a posterior distribuição a estádios, centros de convenções, 50 hospitais e centenas de ambulatórios médicos. “Tenho certeza de que todos os especialistas que colaboram estreitamente no esforço serão capazes de identificar a rota mais fácil para que a vacina seja acessível a todos aqueles que a necessitam”, afirmou à rede ITV o professor Ugur Sahin, cofundador da BioNTech.
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Os jornais britânicos perseguiram todos os caminhões que partiram da unidade de fabricação da Pfizer em Puurs (Bélgica). Nenhum veículo exibia qualquer sinal de identificação na carroceria ou nos contêineres. Downing Street (residência oficial do primeiro-ministro) tomou todas as medidas de segurança para evitar roubos e atos de vandalismo. A Interpol enviou um alerta a 194 organismos policiais do mundo inteiro para que estejam preparados ante uma possível atividade de organizações criminosas dispostas a fazer negócio com a vacina. “Planejam como se infiltrar ou quebrar a cadeia de distribuição, além de buscar potenciais vítimas através de sites que podem colocar em risco a vida das pessoas”, advertiu o secretário-geral da agência internacional, Jürgen Stock.
A maioria dos caminhões concluiu sua viagem na localidade de Folkestone, no centro da Inglaterra, após atravessar o Canal da Mancha pelo Eurotúnel. De lá, segundo fontes citadas por diversos jornais, foram destinados a três laboratórios da Public Health England (PHE, a agência governamental de saúde pública inglesa). Como em qualquer operação dessas dimensões, os problemas começaram a surgir desde o primeiro minuto, e foi preciso mudar planos e improvisar soluções. A anunciada decisão de que os primeiros a receber a vacina seriam os lares de idosos foi alterada por um simples problema de aritmética e temperatura. Os contêineres utilizados no transporte inicial podem armazenar até 5.000 doses, mas as autoridades reguladoras, até o momento, só permitiram sua divisão em pacotes de até 975 unidades. Esses pacotes podem armazenar o recipiente projetado pela Pfizer com sensores térmicos e alimentado com gelo seco. A vacina precisa ser mantida a uma temperatura de 70 graus negativos. A maioria dos milhares de lares de idosos espalhados pelo Reino Unido abrigam apenas algumas dezenas de pessoas. Por isso, sem um planejamento detalhado, corre-se o risco de desperdiçar muitas doses do produto, que não resiste a mais de seis horas de transporte num frigorífico tradicional. O primeiro a reconhecer o problema foi o Governo Autônomo de Gales, que afirmou em nota que, “em termos práticos, neste momento, não somos capazes de distribuir essa vacina aos lares”. A Pfizer também admitiu o problema, mas seus diretores garantem que o medicamento, uma vez estabilizado em seu destino final, pode manter sua eficácia por até cinco dias a uma temperatura de 2 a 8 graus negativos. É previsível que a MHRA dê sua chancela nos próximos dias à divisão dos lotes e a um projeto de distribuição adequado.
A diretora-geral de Atenção-Primária do Serviço Nacional de Saúde (NHS) da Inglaterra, Nikita Kanani, enviou na segunda-feira uma carta a centenas de centros médicos locais avisando que estejam preparados a partir de 14 de dezembro. “Cada um de vocês deverá estar pronto para distribuir 975 doses a pacientes prioritários a partir dessa data ― os maiores de 80 anos que possam comparecer por si sós ou aqueles com patologias prévias que aumentem o risco. Deverão usar a vacina rapidamente nos dias posteriores à entrega. Só podemos garantir três dias e meio de vacinação a partir da chegada ao centro, desde que a vacina seja apropriadamente armazenada a uma temperatura de -2 graus a -8 graus”, adverte Kanani no documento.
Vários membros do pessoal sanitário inglês consultados pelo EL PAÍS no final da semana passada disseram que as decisões ainda continuam numa fase muito centralizada e que eles apenas haviam sido advertidos por seus superiores de que devem começar a se preparar para prestar apoio. Kanani explica em sua carta que a direção do NHS “trabalha em estreita cooperação com os Grupos de Comissionamento Clínico (CCG) para identificar quais centros já estarão preparados para começar a vacinar na semana indicada”. Os CCG são os núcleos administrativos do NHS que organizam, em âmbito local, os cuidados de saúde necessários. O critério prioritário de seleção será a concentração, nas respectivas zonas, de cidadãos maiores de 80 anos, embora também tenha sido solicitado aos CCG que “considerem situações de desigualdade ou de pobreza” na hora de selecionar os centros.
“Estamos tentando encontrar a melhor forma de levar a vacina às pessoas. Mas, no momento, serão as pessoas que deverão comparecer para se vacinarem”, admitiu à BBC Frank Atherton, assessor médico chefe do Governo de Gales. “Devemos analisar as prioridades e ajustá-las à realidade operacional, a fim de poder distribuir a vacina de um modo eficaz e seguro”.
O Governo britânico reconhece agora que a operação deverá começar pelas fases mais fáceis, e que as primeiras doses deverão ser distribuídas nos grandes centros controlados pelo Exército (até 100.000 doses semanais em cada um, segundo cálculos do NHS) e nos 50 hospitais selecionados em todo o país. Jonathan Van-Tam, assessor médico chefe do NHS na Inglaterra e o homem a quem o Governo de Johnson confiou toda a comunicação em sua luta contra o coronavírus, admitiu que os lares de idosos, de novo, terão que esperar e que serão provavelmente os principais beneficiados pela vacina da Universidade de Oxford e da AstraZeneca, muito mais fácil de transportar e armazenar que a da Pfizer. “Assim que for legal e tecnicamente possível levar a vacina aos lares, faremos isso”, afirmou. “Mas se trata de um produto complexo e frágil. Isso não é um iogurte que pode ser colocado e retirado da geladeira várias vezes”.
A resposta dos lares, vítimas trágicas dos erros do Governo durante a primeira onda da pandemia, foi contundente. Vic Rayner, diretor-executivo da National Care Forum (a organização que concentra a maioria das residências de idosos sem fins de lucro), exigiu uma solução para o problema. “Ser o primeiro país ocidental a autorizar a vacina contra a covid-19 é um feito notável. Mas agora devemos concentrar toda nossa energia e engenhosidade para garantir que os mais vulneráveis sejam os primeiros a recebê-la”, afirmou.