A vingança do “bairro horrível” de Atlanta que foi decisivo para a vitória de Biden
Clayton, condado majoritariamente negro e pobre na capital da Geórgia, foi alvo de insultos de Trump no início de seu mandato. Como um bumerangue, a ofensa deu a volta e atingiu em cheio o republicano
Um dos primeiros insultos proferidos por Donald Trump no Twitter após se tornar presidente foi dedicado aos 292.000 moradores de um bairro na zona sul de Atlanta. “É horrível”, “está caindo aos pedaços”, “é um bairro infestado de crime” —estas foram algumas das pérolas que o magnata republicano, então recém-instalado na Casa Branca, dirigiu a Clayton, um condado majoritariamente negro e pobre na capital da Geórgia.
Como um bumerangue, aquela mensagem agora deu a volta e atingiu Trump em cheio. O “bairro horrível” foi o grande protagonista na reviravolta dos resultados eleitorais no Estado sulista. Trump começou a apuração ganhando, mas o maciço apoio democrata dos moradores de Clayton (84%, o maior nos 150 condados do Estado) permitiu que na sexta-feira, com 99% dos votos apurados, Biden passasse à liderança, acariciando uma histórica primeira vitória democrata na Geórgia em 24 anos.
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“Trump está pagando o preço de suas palavras. Nunca respeitou ninguém, muito menos a nós”, diz, na porta de sua casa, Alex Martens, aposentado como professor do ensino médio, de origem nigeriana e morador de Clayton há quase 20 anos. Martens vive com seu neto Tony em uma das casinhas pré-fabricadas de dois dormitórios distribuídas em fileiras numa parte residencial do bairro. Um frondoso parque rodeia o loteamento, mas sem iluminação pública em nenhuma das ruas. “É tranquilo, mas às vezes acontecem coisas”, admite Martens. Segundo os dados da polícia do condado, a taxa de quase todos os delitos se manteve sob controle nos últimos anos —exceto os estupros, que duplicaram no ano passado. “Não é um bairro ideal, mas aquilo que Trump disse foi por uma briga entre políticos. Ele nunca nem esteve aqui”, observa outro morador, comendo pipoca no alpendre de sua casa.
A briga a que se refere, a origem daquele insulto, foi seu enfrentamento com o legendário congressista John Lewis, o último representante da geração de líderes negros que impulsionou na década de sessenta a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele morreu em julho, aos 80 anos, e sua última batalha foi enfrentar Trump. Com mais de três décadas de carreira no Congresso representando o quinto distrito de Atlanta, do qual Clayton é parte, Lewis confrontou o magnata republicano desde o primeiro momento. Defendeu abertamente que não o considerava um presidente legítimo, pelas dúvidas a respeito da participação de espiões cibernéticos russos que ajudaram Trump na eleição de 2016. E até se negou a assistir à posse, arrastando com sua enorme pregação moral mais de 50 congressistas democratas que também boicotaram o ato. A pressão do célebre líder afro-americano desencadeou a resposta furiosa de Trump contra seu condado.
“Adoro saber que o condado Clayton, o território de John Lewis, possa dar a vitória a Biden na Geórgia. Ele deve estar comemorando no céu neste momento com uma das suas famosas danças”, disse na sexta-feira a ex-senadora Claire McKaskill, do Missouri. Justiça poética à parte, a Geórgia, terra de Martin Luther King, é um Estado com enorme tradição na luta pelos direitos civis. Mas não foi apenas a aura das grandes figuras históricas que pesou nesta reviravolta eleitoral. O trabalho de uma nova geração de políticos afro-americanos, fundamentalmente mulheres, começa a frutificar.
A advogada Stacey Abrams, 46 anos, vem há uma década batalhando contra a burocracia eleitoral, garantindo os direitos dos eleitores mais esquecidos, muitas vezes excluídos por argúcias e formalismos como erros de grafia nas cédulas. Abrams, primeira mulher negra a ser indicada candidata a governadora por um dos grandes partidos, conseguiu cadastrar mais de 800.000 novos eleitores nos últimos dois anos. Isso desencadeou um efeito-dominó nas instituições, levando outra afro-americana, Keisha Lance, 50 anos, à Prefeitura de Atlanta.
“Estamos há muito tempo trabalhando nas comunidades. Tratando de recompor o que Trump rompeu nos últimos quatro anos”, afirma Loretta Pereira, 60 anos, uma das organizadoras da campanha democrata em Clayton, admitindo que por trás da gigantesca participação eleitoral —a Geórgia bateu seu recorde histórico neste pleito— há um forte componente de voto de castigo. “Trump despertou muita rejeição. Deu asas ao supremacismo branco. Inclusive há moradores afro-americanos que votaram nele em 2016 e que agora apoiaram pela primeira vez um candidato democrata. Em Clayton existe até uma associação Republicanos contra Trump.”
O voto afro-americano, estimulado também pelo crescimento do movimento por justiça racial Black Lives Matter, uma reação a sucessivos episódios de violência policial contra os negros, foi decisivo para a provável vitória de Biden neste Estado, ainda pendente de uma recontagem que quase certamente acontecerá, dada a margem mínima entre os dois candidatos. A se confirmar, seria o único oásis democrata no meio do cinturão negro sulista. Trump arrasou no Alabama, Mississippi, Louisiana e Arkansas. Segundo os dados que vão sendo crivados destas eleições intermináveis, Trump manteve sua cota entre os votantes afro-americanos, assim como outras minorias como os hispânicos e asiáticos. A dentada diferencial veio entre os eleitores brancos, que são dois terços do total. Em 2016, Trump ganhou o voto branco com 20 pontos sobre Hillary Clinton, mas desta vez se impôs sobre Biden por apenas 15.