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O Japão inacabado de Abe

Primeiro-ministro tentou deixar o passado para trás, mas não pôde completar sua ambiciosa obra política

Shinzo Abe se despede durante sua última entrevista coletiva, no último dia 28 de agosto.
Shinzo Abe se despede durante sua última entrevista coletiva, no último dia 28 de agosto.POOL (Reuters)

Quando em 28 de agosto Shinzo Abe entrou na sala de imprensa, todo mundo já sabia o que ele iria anunciar. Os funcionários fizeram um cumprimento em sua passagem, gesto que ele repetiu por sua vez diante da Nisshoku, a bandeira nacional, colocada ao lado do púlpito. Após retirar a máscara começou dando suas condolências aos familiares das vítimas do coronavírus e seu agradecimento aos trabalhadores do sistema de saúde, até que chegou o momento principal. “Decidi renunciar ao cargo de primeiro-ministro”. O homem que tentou cimentar uma nova narrativa ao Japão se viu obrigado a abandonar o poder, de novo por problemas de saúde, sem poder completar sua obra política.

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28 August 2020, Japan, Tokyo: Japanese Prime Minister Shinzo Abe bows to the Japanese national flag ahead of a press conference at the Prime Minister Official Residence. Citing his health, Abe says he will step down as premier after seven years and eight months in office. Photo: -/ZUMA Wire/dpa
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(FILES) In this file photo taken on March 25, 2020 a woman wearing a traditional Japanese kimono poses next to the Olympic rings in front of the Japan National Stadium, the main venue for the Tokyo 2020 Olympic Games, in Tokyo. (Photo by Behrouz MEHRI / AFP)
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O começo de seu projeto data de 1993, ano em que ele conseguiu chegar pela primeira vez a um cargo público. Como neto de um primeiro-ministro e filho de um ministro das Relações Exteriores, não teve dúvidas de que a política era seu destino. Subiu pela escada do poder até que em 2006 foi eleito pela Dieta Nacional – o Parlamento japonês – como novo primeiro-ministro em substituição a Junichiro Koizumi, se transformando aos 52 anos no chefe de Governo mais jovem da história do Japão após a Segunda Guerra Mundial e o primeiro nascido após o conflito. O mundo mudou muito desde então: dos grandes líderes mundiais, somente Vladimir Putin e Angela Merkel continuam na liderança de seus respectivos países.

Apenas um ano depois, entretanto, se viu forçado a renunciar por uma colite ulcerosa crônica. O Japão afundou em uma época de instabilidade institucional, com cinco diferentes primeiros-ministros durante cinco anos. Em 2009, o Partido Liberal Democrático (PLD) perdeu as eleições gerais pela primeira vez desde sua fundação, em 1955. Até que em 2012, Abe retornou graças ao surgimento de um novo tratamento. Venceu esmagadoramente nas eleições desse mesmo ano e nas de 2014 e 2017, devolvendo o equilíbrio ao país. Quando na semana passada uma recaída o obrigou a dar um passo ao lado, o fez como o primeiro-ministro que mais tempo ficou no cargo. Abe, de 65 anos, deixará de ser primeiro-ministro em 16 de setembro, quando o Parlamento nomeará o sucessor designado pelo PLD em uma eleição interna.

O mandatário foi caracterizado como conservador nacionalista e é membro da Nippon Kaigi, uma influente organização que promove o revisionismo histórico. “Eu o descreveria como um nacionalista moderado”, diz, entretanto, Scott Seaman, diretor para a Ásia da consultoria Eurasia, “no sentido de que pretende que o Japão tenha mais clara sua própria identidade e olhe ao futuro em vez de ao passado”. “Em seu modo de ver, a Segunda Guerra Mundial já terminou há muito tempo. A maioria das pessoas que hoje forma a sociedade do país não havia nascido e ele não quer que se sintam culpadas. Pretendia que sua presidência marcasse um final definitivo à época de pós-guerra e por isso era tão importante para ele modificar a Constituição”.

A atual Constituição pacifista está vigente desde 1957 e foi imposta pelos EUA durante sua ocupação. Sua reforma é uma questão polêmica e uma perene ambição do PLD. A Carta Magna estabelece que o Japão renuncie a exercer o direito soberano da beligerância. O país, de fato, não tem um Exército como tal, mas possui Forças Armadas de Autodefesa que na prática têm a mesma função. Em 2014, com a bênção do presidente norte-americano Barack Obama, Abe realizou uma primeira aproximação para reinterpretar o texto e outorgar mais poderes às forças de segurança, mas não conquistou avanço. Em seu discurso de despedida, fez menção explícita a essa questão. “Tenho um ano de mandato e há muitas tarefas para ser feitas. Devo pedir perdão por renunciar sem resolver a reforma constitucional, o que me causa um grande pesar”.

Não é a única ferida história a curar. Continua aberto o conflito territorial com a Rússia pelas ilhas Curilas, motivo pelo qual os dois países ainda não assinaram um tratado de paz que feche de maneira oficial a Segunda Guerra Mundial. Também a relação com os países vizinhos, China e Coreia do Sul, que consideram que o Japão não mostrou uma dose suficiente de arrependimento em relação ao seu passado invasor. E o sequestro de japoneses pela Coreia do Norte no final dos anos setenta, um assunto ao que Abe dá muita relevância e sobre o qual já se manifestou diversas vezes.

Um de seus grandes desgostos, contudo, é não poder realizar neste ano os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados em princípio para 2021 e destinados a ser o toque final de seu legado. “Acho que sua maior conquista foi recordar que o Japão ainda é um ator global, dinâmico e poderoso. Nos anos oitenta parecia que iria se impor, mas sua história desde então é a de um país em declínio”, diz Seaman. “Sua principal missão foi questionar essa ideia”. Abe fechou sua última entrevista coletiva com uma inclinação aos presentes na sala e novamente à bandeira. O mundo mudou muito desde que chegou ao poder. O Japão também, ainda que não tanto quanto ele gostaria.

A BANDEIRA DA ‘ABECONOMIA’

Quando Shinzo Abe se apresentou às eleições de 2012 o fez com a economia como bandeira. Seu famoso programa, conhecido como Abeconomia, conjugava a expansão monetária, os estímulos fiscais e as reformas estruturais. Essa receita pretendia reativar uma inflação anêmica, que nunca chegou a atingir o desejado objetivo de 2%, e conduziu o país a sua segunda etapa de crescimento mais prolongado em meio século.

“A campanha de estímulos que se seguiu a sua primeira eleição foi provavelmente seu maior acerto”, diz Marcel Thieliant, economista para o Japão da consultoria Capital Economics. “Abe foi um reformista que teve sucessos em várias frentes, como impulsionar a incorporação das mulheres ao mercado de trabalho, propiciar uma abertura à imigração e reduzir o desemprego; ainda que condicionantes cíclicos favoráveis também tenham contribuído”. Nem todas foram boas decisões: os dois aumentos do IVA (imposto sobre consumo) levaram o país a profundas recessões. Deixa, também, uma colossal dívida pública equivalente a 234% do PIB, a maior do mundo.

“O país precisa agora de um líder sólido”, admitiu o próprio Abe. Tudo leva a crer que será Suga Yoshihide, atual secretário-chefe do Gabinete. O PLD apostará nele para uma política continuísta até completar o mandato de Abe em setembro de 2021. Seu sucessor deverá gerir a pandemia e suas consequências econômicas, assim como se antecipar a questões a longo prazo como a evolução demográfica de um país cada vez mais envelhecido e os resíduos do desastre nuclear de Fukushima.


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