Análise

Uma Constituição sob medida para Putin

A reforma da Carta Magna russa representa um passo substantivo no avanço autoritário, personalista e autárquico do sistema dirigido pelo presidente

Vladimir Putin durante uma videoconferência com o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, nesta terça-feira em Moscou.Alexei Druzhinin (AP)

A reforma da Constituição russa, que entrará em vigor depois dos rituais culminantes desta quarta-feira, reforça o papel do presidente com novos poderes e representa um passo substantivo no avanço autoritário, personalista e autárquico do sistema dirigido por Vladimir Putin.

Foram incluídos na Carta Magna aspectos já presentes na legislação russa (como a atu...

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A reforma da Constituição russa, que entrará em vigor depois dos rituais culminantes desta quarta-feira, reforça o papel do presidente com novos poderes e representa um passo substantivo no avanço autoritário, personalista e autárquico do sistema dirigido por Vladimir Putin.

Foram incluídos na Carta Magna aspectos já presentes na legislação russa (como a atualização das pensões e a proibição da dupla cidadania para cargos públicos). A propaganda de um sistema supostamente “social” e “nacional” (o “nosso”, enfatizam os cartazes de rua em favor das mudanças) e o uso de recursos administrativos tradicionais (como pressões sobre os subordinados) contribuíram para a participação na semana de votação ao ar livre que começou em 25 de junho.

Por sua mobilização e cenários, a campanha pelo voto popular lembra os itinerários dos vendedores ambulantes de sorvete ou de kvas (popular refresco eslavo) na União Soviética. Só que agora, em jardins, parques e pátios, as urnas substituíram a geladeira portátil com vitrine que conservava os sorvetes e o tambor de metal colorido a partir do qual o refrescante líquido fermentado era vertido nas garrafas dos moradores. Hoje, os cidadãos têm acesso aos atraentes prêmios oferecidos pelos promotores da consulta, que não é um referendo e não tem precedentes na Rússia.

A votação deixa de lado os três capítulos da Constituição (o primeiro, o segundo e o nono, referentes à ordem constitucional, aos direitos e liberdades dos cidadãos e à adoção de emendas, respectivamente) cuja modificação requer uma assembleia constituinte, um órgão ainda não criado. Em questões importantes, as modificações no restante do documento contradizem a parte que foi protegida de ligeirezas legislativas. Portanto, a espinha dorsal da Constituição se vê minada pelos aspectos que agora são acrescentados a ela. Assim, o primado do direito internacional é diminuído pelo do direito nacional, que agora é estabelecido constitucionalmente, e a autogestão e as competências dos territórios são contrariadas pelo fortalecimento da vertical de poder.

Para dirimir essas contradições, é previsível que, no futuro, o Tribunal Constitucional se pronuncie, o qual, devido justamente a estas reformas, será muito mais dependente do presidente. Decerto, o Tribunal Constitucional concedeu sem discussões a Putin o direito de voltar a disputar a presidência em mais duas ocasiões, se assim o desejar, direito que o mesmo tribunal negou em 1998 a Boris Yeltsin, o primeiro presidente da Rússia, para as presidenciais de 2000 e essa negativa abriu o caminho para Putin.

O procedimento excepcional idealizado para esta ocasião se destina a dotar as emendas, já aprovadas pelo Parlamento, de um suplemento de legitimidade simbólica. Por trás do folclore está o núcleo duro da reforma, a saber, o aumento dos poderes do presidente e a possibilidade de se prolongar no poder.

Em resposta às críticas do Partido Comunista, Putin disse em 14 de junho que as emendas não ampliam seus poderes, “ao contrário, pois o presidente entrega de uma parte substancial de seus poderes”. Como exemplo, Putin mencionou a nomeação do chefe do Governo.

As palavras mudaram, mas o poder do presidente é maior. No novo texto, a Duma (Câmara baixa do parlamento) não pode destituir o Governo, embora o “confirme” em vez de “aprová-lo” como antes (exceto os ministros do bloco militar e de segurança, reservados exclusivamente ao presidente). A Câmara mantém a possibilidade de fazer uma moção de censura contra o chefe de Governo, mas agora o procedimento pode não se traduzir em uma clarificadora crise política. Se antes, no caso de moção, o presidente tinha de escolher entre o Governo e o Parlamento, agora o presidente poderá continuar trabalhando com ambas as instituições, independentemente do grau de confiança da Duma.

O presidente também aumenta seus poderes na configuração do poder Judiciário (inclusive o Tribunal Constitucional e o Tribunal Supremo) não apenas devido à ampliação dos cargos que pode nomear nos escalões judiciais, mas pelos novos poderes que adquire para destituí-los. O Conselho da Federação (Câmara alta do parlamento) adquire, assim, funções consultivas (de alcance indefinido), onde antes tinha um papel protagonista. O presidente agora pode propor a essa câmara a destituição dos juízes do Tribunal Constitucional e do Supremo. Também pode destituir o procurador-geral do Estado, que nomeia depois de “consultas” (não especificadas) ao Conselho da Federação. Antes, era o Conselho da Federação que nomeava ou destituía o procurador-geral do Estado por proposta do presidente.

A representação dos territórios se dilui um pouco no Conselho da Federação, que também passa a depender mais do presidente. Este quase dobra (de 17 para 30) o número de seus representantes na Câmara das Regiões, onde, até agora, os representantes do presidente podiam chegar a 10% do total de senadores territoriais (atualmente 170, à razão de dois para cada unidade administrativa do Estado). No futuro, os representantes nomeados a dedo pelo presidente poderão ser até 30 (dos quais 7 podem ser vitalícios) e a câmara também incluirá os ex-presidentes da Rússia (também vitalícios).

O chefe de Estado também se dota de um instrumento extra para contornar a vontade do Parlamento, se este conseguir derrubar o veto presidencial a uma lei. Se o Parlamento, em uma votação repetida, obtiver o apoio de dois terços das duas casas necessário para forçar a assinatura presidencial de uma lei, o chefe de Estado poderá recorrer ao Tribunal Constitucional (agora mais dependente do próprio presidente) para resolver o caso.

A vontade da administração presidencial de executar a reforma sem discussões dilatórias foi férrea. O grupo de cidadãos destinado a agir como claque das emendas incluiu figuras do esporte, da arte e da cultura, enquanto reconhecidos constitucionalistas profissionais foram conscientemente rejeitados. Em nome da Associação de Juristas da Rússia, Oleg Rumiantsev, que dirigiu o grupo de trabalho preparatório da Constituição russa em 1990-1993, ofereceu seus serviços e os de 24 políticos e juristas experientes logo que Putin fez sua proposta em 15 de janeiro. À carta e à coleção de propostas enviadas em 17 de janeiro ao senador Andréu Clisas, copresidente do grupo de trabalho para apresentar as emendas, um assessor do destinatário respondeu em 5 de março, agradecendo-as e dizendo que suas propostas seriam estudadas. “Eles têm medo da opinião competente e independente”, afirma Rumiantsev em entrevista a este jornal. O jurista acredita que a modificação constitucional revela o consenso entre os grupos no poder, o dos oligarcas e grandes empresas e o das instituições de Segurança e Defesa, todos unidos pelo desejo comum de “manter o monopólio dos ativos, das finanças e do subsolo”.

A Constituição que está sendo reformada é um híbrido resultante da colisão entre o Legislativo e o Executivo saldada com o canhoneio do Parlamento em outubro de 1993. O texto aprovado em dezembro de 1993 tem duas partes, uma procedente do grupo de trabalho que durante vários anos preparou a primeira constituição pós-soviética antes do trágico desenlace e outra, realizada sob a égide do presidente Boris Yeltsin, o vencedor da disputa, destinada a reforçar o papel presidencial. “O principal erro estratégico de Putin é que, em vez de superar o conflito interno desta Constituição, fez uma falsa reforma constitucional que leva a uma maior concentração de poder em um clã e deixa a sociedade civil sem um possível mecanismo independente em atividades políticas, iniciativas sociais, fluxos financeiros, informativos ou de negócios.” Talvez o conceito de clã seja uma pista. Em entrevista à agência Tass, German Gref, presidente do Sberbank (o maior banco da Rússia) e ex-ministro dos primeiros Governos da era Putin, disse que o presidente não deseja estar no cargo por muito tempo e que a operação de zerar seu contador “é um passo de fundamental importância para manter o equilíbrio de todo o sistema”. Para que os clãs não lutem entre si?

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