Seguimos as instruções de Dalí para tirar o tarô, e isto é o que ele diz sobre 2021
Pintor surrealista criou esse baralho para o filme ‘Com 007 Viva e Deixe Morrer’, mas acabou por só incluí-lo em um livro após dedicar 10 anos de trabalho
Como dizia o psicanalista e filósofo humanista Erich Fromm, a linguagem simbólica é aquela na qual o mundo interno, os sentimentos e os pensamentos são expressos como se fossem experiências sensoriais procedentes do mundo exterior. E Salvador Dalí expressava essas experiências íntimas através da sua arte surrealista. Amigo e admirador de Freud, em julho de 1938 o visitou quando tinha 34 anos de idade, e Freud, 82. Um encontro que, conforme contou ele mesmo em sua autobiografia publicada em 1942, o impressionou profundamente, e por ocasião do qual Freud sentenciou: “Se você olha os quadros dos velhos mestres, sente-se imediatamente inspirado a procurar o aspecto inconsciente, mas se olha um quadro surrealista, sente-se inspirado imediatamente a procurar o aspecto consciente”.
Em 1970, quando Dalí recebeu a proposta de ilustrar as 78 cartas do tarô para um filme do James Bond, Com 007 Viva e Deixe Morrer, produzido por Albert Broccoli, o artista estendeu seu subconsciente a um objeto que tinha nascido para materializar seu talento surrealista. A simbologia dessas cartas, que não fazem outra coisa senão expressar conscientemente o mundo interior dos sonhos e do irracional, guarda estreita sintonia com o próprio universo de Dalí. Entretanto, o projeto não chegou a ser concluído, por causa do cachê astronômico pedido pelo artista. Se o seguiu quando o acordo contratual fracassou foi graças à sua esposa, Gala, que alimentou o interesse do artista pelo misticismo.
Dalí trabalhou em seus desenhos durante nada menos que 10 anos. O resultado foi reunido em um manual para tarólogos novatos, com as ilustrações das cartas ocupando páginas inteiras e sua respectiva explicação. A primeira edição do Tarot Universal Dalí saiu em 1985, e hoje só é encontrado de segunda mão. Recentemente, a editora Taschen relançou o manual acompanhado do maço completo de 78 cartas (os 22 arcanos maiores e 56 menores), em um estojo junto com o livro do autor alemão Johannes Fiebig sobre a vida do artista catalão e a história por trás da criação desse peculiar baralho de tarô, onde aparecem o próprio Dalí, como o mago, e Gala, como a imperatriz.
Seguimos as indicações de Dalí para tirar suas cartas e saber, do ponto de vista do seu universo surrealista, o que podemos esperar para os próximos 365 dias. Estes são os resultados, insólitos por serem tão acertados, embora completamente fortuitos. A leitura das cartas do tarô de Dalí para 2021, graças aos textos de Fiebig, não só nos traz uma previsão mística do que podemos esperar no ano que estreia. Para quem prefere se aferrar aos fatos, mas não renuncia à contemplação, representa um percurso pelo universo pictórico do artista.
Seguimos passo a passo as indicações que Dalí deixou escritas: “Embaralhe as cartas da maneira costumeira. Todas as regras, como a de tirar a carta com a mão esquerda ou a de embaralhar as cartas em cima de uma mesa, etc., são absurdas”. De acordo. “Decida de antemão como deseja abrir as cartas.” Optamos por uma das formas tradicionais, em cruz, não sabemos porquê. “Abra-as de cara para baixo sobre uma mesa. Vire as cartas uma a uma. Conclua a interpretação de uma carta antes de virar a seguinte [...]. A soma de todas as cartas é a resposta à sua pergunta.” Vejamos.
Carta 1. A chave de tudo
O 4 de copas
Na carta do quatro de copas desenhada por Dalí, a personagem principal se acha sentada junto às raízes de uma árvore, que simbolicamente representam suas próprias raízes. “Anuncia-se”, diz o tarólogo alemão Fiebig, encarregado das interpretações das cartas de Dalí, “uma nova experiência espiritual [...]. Trata-se de alturas e abismos, de alegrias e de tristezas, de pôr os sentimentos próprios em uma relação dos nossos congêneres [...]. A ave na árvore nos adverte dos caprichos e ideias não controladas ao mesmo tempo em que nos anuncia, entretanto, que uma nova reflexão e um novo entusiasmo são possíveis. A figura em forma de sombra na margem esquerda alude em sentido positivo às reservas da alma”. Parece que com esta carta Dalí nos pede para olharmos para dentro. Estes são os conselhos práticos de Fiebig: “Vá a fundo com seus sentimentos. Deixe que sua alma se equilibre. Trace limites bem definidos. Na meditação e na calma, você encontrará palavras que até então não tinha”.
Carta 2. O passado
O 3 de espadas
Esta carta representa o que deixamos para trás, o fatídico ano de 2020, e não está muito equivocada: “Emoldurado por um insinuado coração vermelho, um fragmento do quadro Roger Libertando Angélica, de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1819). O quadro de Ingres retoma o motivo clássico da luta contra o dragão. O dragão negro pode ser visto no fundo do grande coração. A imagem alerta para os sentimentos nocivos, perante as feridas que podem se abrir ainda mais com as espadas [...]. Dê uma chance ao amor, também ao amor à verdade e à honestidade”. Conselhos práticos: “Não se renda. Arrisque-se a ser mais honesto”.
Carta 3. O que está por vir ou exige uma nova avaliação
O valete de ouros
“Como presente da vida, a moeda reflete que, toda vez que o talento próprio foi reconhecido e compreendido, você mesmo é um tesouro, para si e para o entorno. O talento próprio nos parece às vezes insignificante, como a grande libélula noturna transparente ao pé da imagem. [...] Cada ser humano possui capacidades singulares. O processo de voltar a ser uma criança, já sendo adultos, pode invocar fantasmas do passado, como a figura da imagem no fundo direito. Se puser à prova os valores e avaliações costumeiros, encontrará respostas às suas perguntas. O que perdeu significado? O que ganhou importância agora? Tudo tem seu valor, se você souber tomá-lo como seu de maneira consciente.” Parece que Dalí tinha uma carta preparada para a nova normalidade.
Fontes pictóricas: Master Hare (1788-1789), de sir Joshua Reynolds.
Carta 4. A raiz de tudo, o fundamento
O 10 de copas
“É a carta do cumprimento dos grandes desejos e paixões, mas também do falso romantismo da embriaguez. Como alcançar uma coisa e evitar a outra? As 10 taças no arco-íris significam, em sentido positivo, sensação de segurança, proteção e confiança. Em seu lado negativo, significam o isolamento [...]. Tais condições de vida têm, no melhor dos casos, um efeito-estufa: protegem, mas mantêm a vida real à distância.” O acaso nos coloca perante as duas caras do 10 de copas: o confinamento ou a confiança e a segurança. Talvez 2021 nos traga o segundo e nos deixe abandonar o primeiro.
O equilíbrio é delicado, como na própria composição. “As duas pessoas da imagem foram tiradas de um quadro de Giuseppe Bonito. Abaixo, Dalí montou o fragmento de outro quadro, os três pêssegos da tela Os Cinco Sentidos (1638), de Jacques Linard. Ambos os fragmentos abordam o tema da paixão e da sensualidade, assim como o de seus efeitos nocivos e edificantes”. Conselhos práticos: “É uma boa oportunidade para refletir sobre suas paixões. Ao fazê-lo, se sentirá muito mais seguro se for capaz de diferenciar em que medida pode confiar em si mesmo e nos outros. Suas experiências e seu conhecimento do ser humano serão postos à prova aqui”.
Carta 5. A oportunidade
Cinco de espadas
“Um homem [Charles I da Inglaterra (1635), de Anthonis van Dyck] com espírito, frente à mulher, com ambas as pernas bem firmes sobre a terra, como imagem de um espírito liberado e de uma liberdade similar à de uma mariposa”. A mesma imagem pode ter um significado muito diferente. “Um homem satisfeito consigo mesmo, que se dá por contente com a essa parte da espada que pode apreender, encontra-se em um abismo, só recebe a mulher de um modo esquemático, a mulher não tem acesso à espada. Aprenda com suas experiências.” Conselhos práticos: “Colha frutos do seu saber. Preste atenção às duas espadas que jazem no chão, esteja a par do poder das suas ideias não aproveitadas. Cuide-se das promessas vazias e das hipóteses sem fundamento. Verifique o que é belo e bom no presente”.