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Mulheres erguem a bandeira do poder latino na baía de Tóquio

A brasileira Rebeca Andrade, medalhista de prata, é a primeira latino-americana a subir ao pódio na ginástica em uma prova completa em que a norte-americana Suni Lee herda o trono de sua amiga Simone Biles, que a incentiva das arquibancadas

Rebeca Andrade durante sua performance histórica na Tóquio 2020, que rendeu ao Brasil sua primeira medalha na ginástica feminina em Olimpíadas
Rebeca Andrade durante sua performance histórica na Tóquio 2020, que rendeu ao Brasil sua primeira medalha na ginástica feminina em OlimpíadasDYLAN MARTINEZ (Reuters)
Carlos Arribas

No parque urbano, à esquerda da avenida principal da Baía de Tóquio, um labirinto de ilhas artificiais e torres de concreto, aço e vidro, Mariana Pajón, de Medellín (Colômbia), arrasa, como faz há nove anos no circuito de BMX, as bicicletas pequenas, os saltos de motocross, rampas verticais, tão verticais como as ruas verticais dos lugares de sua Antioquia (Colômbia), e cumes, e não para de vencer nem nas séries de quartas. Campeã em Londres e no Rio, ela é a favorita uma vez mais, assim como foi Simone Biles, para conquistar na Tóquio 2020 seus segundos Jogos na ginástica, 500 metros adiante, à esquerda da avenida, poucas horas depois, no mesmo dia 29 de julho, e Biles, aliás, está ali, inquieta, incapaz de ficar parada, pulando mas não voando, porque ela está na arquibancada do canto das assimétricas, e bate palmas como uma louca para o pódio, onde sua companheira e amiga, Sunisa Lee, de apenas 18 anos, ocupa o lugar mais alto, e se mantém firme.  Lee, de Saint Paul, Minnesota, que frio, e também Biles, de Columbus, Ohio, e levam a mão direita ao cuore enquanto soa o Star spangled banner, o hino que saúda a quinta vitória consecutiva em Jogos Olímpicos de uma ginasta norte-americana na prova completa. E Lee, filha de pais cambojanos que vieram para os Estados Unidos ainda crianças, e que convive sempre com o drama —o pai ficou paralítico ao cair de uma árvore enquanto socorria um amigo; seus tios morreram de covid-19 em 2020 —, sempre diz a sua chefa, Simone, você é minha heroína.

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Tokyo 2020 Olympics - Gymnastics - Artistic - Women's All-Around - Final - Ariake Gymnastics Centre, Tokyo, Japan - July 29, 2021. Rebeca Andrade of Brazil in action during the floor exercise. REUTERS/Mike Blake
Rebeca Andrade leva seu ‘Baile de favela’ ao pódio em Tóquio e dá ao Brasil medalha inédita na ginástica

E a que ganharia ―até que a cabeça lhe disse que havia na vida algo mais importante que as medalhas, e que o mundo a admirava por isso também, espectadora de si mesma―aplaude a que ganhou. Nos últimos cinco Jogos, depois que Sidney coroou a romena Simona Amanar, todas as ganhadoras foram norte-americanas.

E, à direita de Sunisa Lee, um pequeno degrau abaixo, sorri radiante Rebeca Andrade, de São Paulo, poder latino que faz soar primeiro Bach no órgão da igreja evangélica, sua religião, e depois o funk do baile da favela de seu amigo músico e paulista MC João, sua vida, memória de sua origem humilde, para seu exercício de solo, puro fogo e energia, tanta que seu pé sai da área demarcada em algumas diagonais em que chega tão alto que tira as teias de aranha (que não existem, estamos no Japão, higiene e limpeza máximas) do teto de madeira do ginásio. É o exercício mais arriscado (5,9 de dificuldade). Nenhuma das que disputam as medalhas têm tamanha ousadia. A penalidade de quatro décimos pelos passos que se aventuraram até o marco azul escuro do solo, o castigo pelo risco, custou a vitória de Andrade, a primeira latino-americana que sobe um pódio de ginástica em Jogos Olímpicos – e não foi campeã por pouco mais de um décimo.

Poder latino ever. Energia, vida, potência para voar até o teto, problemas para aterrissar sobre um solo de várias camadas de nylon dispostas com velcro sobre uma folha de 14 por 14 metros que esconde tremendas molas. Capacidade de voltar a saltar, uma mola que recupera sua posição depois de cada golpe, de uma ginasta de 22 anos, taurina de maio de 1999, que rompeu três vezes os ligamentos de um joelho, e nove meses de recuperação para cada um, e semanas de depressão e choro. A última sala de cirurgia, outono de 2019. Biles chorou no dia em que anunciaram que Tóquio seria adiado por um ano; Andrade explodiu de alegria: o atraso lhe permitiria se recuperar, vencer os Panamericanos e se classificar para sua segunda Olimpíada após ter uma experiência ruim no Rio. E chega aonde chegou a pioneira Daiane Santos, campeã mundial em 2003, mas nunca medalhista olímpica.

Em terceiro fica a russa Angelina Melnikova, a ginasta que liderou sua equipe na vitória de terça-feira contra a equipe dos EUA que Biles integrava. A espanhola Roxana Popa –magnífico salto, bom solo, barras regulares e mal equilíbrio, trêmulo e inseguro – se classifica em 22o.

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Andrade começa marcando o caminho com o salto mais difícil, o Cheng que Biles tanto ama, e o mais bem realizado. E ninguém a supera nas assimétricas, a especialidade de Lee. Enquanto a norte-americana, borboletas no estômago, nervos quase incontroláveis, resiste na barra de equilíbrio, no corredor Andrade ensaia e decora todos os passos, saltos, cambalhotas e piruetas que fará mais tarde sobre uma madeira de uns 10 cm de largura. No corredor, perfeita, sobre a barra, não, e ali se desequilibra, e não cai, mas fica em terceiro, atrás da menina russa Vladislava Urazova, de 16 anos, surpreendentemente primeira quando só falta o solo. Precisa arriscar, e arrisca, e o pé sai do limite. Urazova falha, mas não Lee, da etnia Hmong, povo que caminha errante da China à Indochina francesa, submetido como bucha de canhão do exército colonial em suas guerras perdidas sempre, e lutadora para que sua identidade seja reconhecida nos EUA. E o ouro que pendura no pescoço levará a mensagem a todos os cantos. E a prata de Andrade, que lembra que a ginástica, poder latino também, orgulho, já não é a fortaleza de quatro potências, brilha como uma pequena luz de esperança em todas as favelas de São Paulo.

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