Máximo Torero (FAO): “Perdemos uma década na luta contra a extrema pobreza”
Economista-chefe da entidade alerta que os indicadores de desnutrição pioraram com a pandemia e teme que a situação piore com o acesso desigual às vacinas
Máximo Torero (Lima, Peru, 54 anos) é, desde janeiro de 2019, economista-chefe da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) das Nações Unidas. Trabalhou antes no Banco Mundial. E a maior pandemia em 100 anos não existia. Nem a videoconferência entraria em seu escritório romano (onde fica a sede do órgão). Embora as palavras cheguem, com fluidez, à memória e ao diálogo. “Como se reduz a desigualdade? Com infraestruturas”, defende. Mas, ao contrário, tudo aumenta com a crise sanitária: a desigualdade, os índices de pobreza, o risco de guerra pela água, a desnutrição, enquanto os países ricos açambarcam alimentos para seus celeiros de egoísmo.
Pergunta. O vírus está colocando em risco a segurança alimentar?
Resposta. Agora temos 690 milhões de pessoas com problemas de desnutrição crônica. A covid-19 vai aumentar esse número em 132 milhões. Estamos falando da vida de 822 milhões de seres humanos. Todos os indicadores estão piorando. Isso é agravado pela quarentena, pois muitas vacinas tradicionais (além das do coronavírus) não estão podendo ser administradas nos países em desenvolvimento, aumentando assim seu risco sanitário.
P. Vemos filas por alimentos em bairros de madrilenhos como Vallecas ou Aluche, algo que faz lembrar os anos do pós-guerra na Espanha.
R. Na extrema pobreza, em todo o mundo, aumentamos entre 88 e 115 milhões de pessoas. Perdemos mais de uma década na luta para sua redução. Você fala da Europa. Mas aqui as pessoas têm seguro-desemprego e podem receber ajudas para comprar comida. Agora desloque a extrapolação para a África ou para a América Latina, onde as economias são informais e falta essa rede de segurança social. Estamos vivendo uma recessão e os mais pobres são os mais prejudicados, a pandemia aumentará a desigualdade.
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Clique aquiP. Os 750 bilhões de euros prometidos pela Europa podem ajudar?
R. A FAO pede à Europa que priorize os investimentos em questões que possam dar um bom retorno e que resolvam os problemas a médio prazo. Se o seu país ou a sua região não digitalizou a agricultura, use o dinheiro para esse fim. Não o desperdice com subsídios ou transferências que desaparecem muito rapidamente e que não se sabe a quem dar. Além disso, passamos por outra questão que nunca se resolve: as pessoas que estão sofrendo agora não são, necessariamente, aquelas que sempre sofreram. Existem setores mais afetados do que outros. Antes da covid-19, cerca de três bilhões de pessoas no mundo careciam de uma dieta saudável.
P. Estamos vivendo em uma era de neolatifundiarismo. A China e a Rússia estão comprando ou arrendando grandes extensões de terras agrícolas na África e na América Latina com o objetivo de alimentar seu povo.
R. Vou dar alguns dados. Entre 2018 e 2021, as empresas chinesas assinaram 45 acordos (7 na África, 20 na Ásia e 18 na Europa de Leste). Foram 8 aquisições entre 200 e 999 hectares e 37 de 1.000 hectares. No caso da Rússia, houve 33 acordos na Europa de Leste, um variando de 200 a 999 hectares e 32 de 1.000 hectares. Investir na agricultura é bom, desde que as normas de segurança sejam seguidas. Em outras palavras, que a propriedade da terra, das florestas e da água seja respeitada. O investimento em terras sempre aconteceu (não importa que você seja da China ou da Rússia), o importante é que os países tenham o apoio institucional para que esses princípios sejam cumpridos.
P. Sem dúvida. Mas nunca tinham sido vistos tantos fundos de investimento e sua estratégia especulativa em todas as etapas da cadeia alimentícia.
R. É preciso separar. Uma coisa é atrair recursos através de fundos para produzir e outra, à qual você se refere, é usar esses fundos em que entram produtos agrícolas destinados a especular. Na crise de 2007-2009, segundo meus cálculos, eu ainda não estava na FAO, a presença de uma volatilidade excessiva nos preços gerou uma especulação tão forte que fez com que os preços dos alimentos subissem a um nível para além dos fundamentos do mercado. Foi um período de muita volatilidade. Se é normal e dá liquidez, é boa, mas quando é muito alta se transforma em um drama. Minha proposta, para defender os preços, era fixar um máximo que não pudesse ser ultrapassado nos mercados futuros.
P. Mas agora até na água há especulação.
R. É um bem escasso e seu preço não está nos produtos que a contêm. Exporto itens agrícolas de áreas com água para outras sem água e não estou repassando o custo para o produto. Falta um valor claro e sim, em vez disso, há muita assimetria. Isso está acontecendo na Califórnia, onde sofrem uma forte seca. Então, o mercado futuro é uma boa opção. Você sabe quanta água existe e em quais áreas. O que esse mecanismo faz é transferir um preço ótimo entre as áreas com excedente e aquelas que sofrem de escassez. Dá transparência aos preços. Mas estamos falando de água, um direito humano. Portanto, não podem ser mercados totalmente livres, devem ser regulados para respeitar também esses direitos do homem.
P. Então, Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia para o Pacto Verde, está errado quando diz que “nossos filhos irão para a guerra pela água”?
R. Se não projetarmos a estratégia hídrica com mais cuidado, podemos nos encontrar em uma situação muito crítica. Cerca de 3,2 bilhões de pessoas vivem em áreas agrícolas com problemas de escassez. A situação é muito grave. É preciso tecnologia para melhorar a eficiência e políticas apropriadas com os incentivos corretos. Porque a falta de água em áreas onde já existem conflitos será um risco muito sério.
P. Assim como acontece com as vacinas, o protecionismo agrícola está se intensificando?
R. É algo que devemos evitar. Se restringirmos o comércio, criaremos uma crise alimentar quando não há nenhuma razão para isso. Temos de fazer um esforço com informações transparentes para evitá-lo. Se colocarmos barreiras à exportação de alimentos em três ou quatro países-chave, podemos, como dizia, provocar uma crise onde não deveria existir.
P. E o que fazemos com multinacionais como a antiga Monsanto, hoje propriedade da Bayer, que utilizou engenharia genética em sementes e herbicidas?
R. Estamos polarizando o campo e isso é um erro. Existem nações em que a agroecologia pode ser a melhor opção e outras onde é a biotecnologia. Temos que ver o que a ciência nos ensina. Analisar as necessidades do país, os tipos de solo, as urgências que tem, ou se a solução desejável passa por combinar as duas respostas. Outro aspecto, e muito importante, é o das instituições. Quando existem empresas tão grandes e com tanto poder que os governos não conseguem fazer cumprir a regulamentação, isso é um grande problema e é imprescindível evitá-lo através de organismos fortes.
P. Nos dias mais sombrios da pandemia, foram os trabalhadores sazonais, os imigrantes, que colheram as safras do mundo rico. Quanto lhes devemos?
R. É inaceitável que um país tenha um duplo padrão entre o imigrante e o local. O trabalho deve ser da mesma qualidade, porque, do contrário, você está aumentando a desigualdade. E em países que só podem sobreviver com uma economia informal, é fundamental apoiar as pessoas mais afetadas. É urgente aumentar a resiliência. Isso ajuda a minimizar os riscos por meio de sistemas de alerta precoce e aumenta a capacidade de enfrentar os perigos quando estes acontecem; e por isso é importante se concentrar nos mais vulneráveis.
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