Explosão do IGP-M traz aumento desproporcional do aluguel e revela índice que envelheceu
Reajustes surpreendentes para os locatários têm como referência índice criado nos anos 50 que bateu recorde em 2020 e leva em conta valores de ‘commodities’ por todo o mundo
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Imagine ter um corte de 25% no seu salário em função das dificuldades que a pandemia trouxe para o mundo. Ao mesmo tempo, imagine ter um reajuste de aluguel de 30%, apesar da pandemia. A explosão do Índice Geral de Preços - Mercado (IGP-M), em 2020, que chegou a 23,14% – a maior alta desde 2002 —bagunçou as relações econômicas e os preços do mercado, principalmente do aluguel. A alta foi um desvio da curva do IGP-M, que em 2019, 2018 e 2016, não passou dos 8% —e, em 2017, chegou a negativar em 0,52%. Mas, para alguns proprietários de imóveis, não teve conversa. Felipe Portes, 31, e Camila, 32, de Curitiba, sentiram na pele essa realidade. E a conta não fechou.
O casal teve de encarar uma redução de um quarto de seus salários com a economia fragilizada pela covid-19. Eles continuaram a cumprir seus compromissos sem atrasos pelo apartamento de 40m² no bairro do Capão Raso, a 20 minutos do centro da capital. O que eles não esperavam era que, um ano depois, mesmo com o número de mortes e internações no auge e a renda ainda afetada, o reajuste anual do aluguel seria de mais de 30%. Os inquilinos não tiveram escolha a não ser deixar o imóvel. “Nosso contrato acaba em maio e, no dia 30 de março, recebemos o email comunicando o reajuste de 31%”, relata Portes. Esse foi o valor anualizado do IGP-M no mês de março, ou seja, o quanto o IGP-M havia subido de abril de 2020 a março deste ano. Assim, de um mês para o outro, o aluguel de 1.100 reais iria para a casa dos 1.500 mensais.
Juntos, o analista de risco de uma empresa financeira e a professora calculam que recebem hoje, em seus empregos, 500 reais a menos do que ganhavam há um ano. “No ato dissemos que não aceitaríamos, mas que poderíamos negociar. Oferecemos até 10% de reajuste, que é o dobro da inflação atual [ao consumidor, IPCA], mas a proprietária foi irredutível e disse que 15% estaria satisfatório. Satisfatório para quem?”, reclama. “Considero absurdo e inaceitável pagar o que ela pediu, justamente por eu ter tentado flexibilizar e ela ter ignorado. Agora, põe na conta o transtorno de uma mudança inesperada no meio da pandemia, tendo que fazer vistoria e pintar o imóvel”, continua.
O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de março, que serve de referência para o reajuste dos alimentos, por exemplo, subiu 6,10% em doze meses. O IGP-M, por sua vez, é usado para balizar os preços de empresas em relações conhecidas como BtoB (business to business) além dos aluguéis. Ele leva em conta, de forma conjunta, a variação nos preços internacionais de produtos no atacado, matérias-primas como petróleo e minério de ferro, além de materiais e mão-de obra ligados à construção civil, além de um outro índice ao consumidor, o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) ao mercado, que trata de produtos que chegam ao consumo direto da população.
Com a tendência de aumento se mantendo em janeiro, fevereiro e março, o IGP-M chegou a 31% de inflação nos últimos 12 meses. “Não faz sentido nenhum você cobrar com base nesse índice, ainda mais no meio de uma pandemia”, opina Portes. De fato, o que a inflação global no preço de matérias-primas, como petróleo bruto, ou soja em grão tem a ver com o aluguel do seu apartamento em Curitiba?
O professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), Heron do Carmo, tem uma opinião parecida. “A composição do IGP-M data dos anos 50. Não tem mais o menor cabimento, como também não faz sentido usar esse índice para reajustar o aluguel”, comenta ele. O economista explica que a adoção do IGP-M como referência para os contratos vem da época da ditadura militar, quando o modelo econômico deixava todos os índices para medir a variação dos preços “bem parecidos”. Sem tanta diferença entre os índices, o IGP-M passou a ser o preferido para basear os contratos de aluguel porque é o único que sempre foi divulgado no último dia útil do mês. “Como poderiam usar qualquer índice, este se tornou conveniente porque era possível saber o reajuste seguinte antes do fim do mês. E isso se tornou um padrão”, completa Carmo.
Com o passar das décadas, a taxa de câmbio das moedas brasileiras —houve várias até se chegar ao real, em 1994— em relação ao dólar, controlada pela inflação durante o regime dos militares, passou a ser determinada pelas atividades econômicas globais. E isso fez com que o IGP-M, mais suscetível às variações do preço do dólar, se tornasse um índice mais instável do que a inflação em alimentos, por exemplo, podendo negativar num ano e dobrar no outro. “Ele não depende da política econômica nacional, mas da internacional. Reflete basicamente o mercado de matérias-primas exportadas pelo Brasil. É bom para análises, não para contratos, porque dá um peso muito pequeno aos serviços que baseiam a nossa economia”, acrescenta o economista. O grande aumento recente do dólar, que está próximo dos 5,60 reais, é a principal causa para o reajuste surpreendentemente alto dos aluguéis por todo o país. “É por isso que alguns economistas estudam criar um índice exclusivo para o aluguel”, adianta Heron do Carmo.
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Clique aquiIndependentemente do contexto brasileiro, o economista prevê que os preços das commodities não subirão no mesmo ritmo ao longo de 2021, o que deve fazer o IGP-M cair e, consequentemente, preocupar menos os locatários para a negociação do ano que vem. “Imagino que o índice vá ficar oscilando até junho, e então abaixar durante o segundo semestre”, diz Carmo. A valorização do real frente ao dólar, que depende, entre outras coisas, da estabilidade política e da pandemia de covid-19 no Brasil, também poderia fazer o índice “despencar” até 2022.
Por ora, é preciso encarar as dores de cabeça deixadas por essa desordem na economia e nas relações comerciais pelo IGP-M atual. Felipe e Camila, por exemplo, tiveram um final feliz. Após fazer uma publicação em suas redes sociais, o analista achou um apartamento próximo de 69m² pelo mesmo preço do atual e já acertou a nova locação. Ele diz que não sabe se outro inquilino alugará o imóvel do qual está saindo. Heron do Carmo lembra que os tempos atuais exigem outra postura. “O locador precisa saber que, numa pandemia, essa irredutibilidade demonstrada pela dona em questão ficou inviável. O aumento foi tão desproporcional que quem não consegue negociar acaba perdendo o inquilino, e às vezes nem consegue alugar pelo mesmo valor”, alerta o professor de economia da USP.
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