FMI defende aumento de impostos aos mais ricos e às empresas lucrativas para pagar a conta da crise

Chefe do Departamento de Finanças Públicas do Fundo recomenda destinar os recursos para a saúde e a proteção social em uma pandemia que afetou “de maneira desproporcional” os mais pobres

A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, em março em Washington.Samuel Corum (GETTY)

A crise do coronavírus está invertendo muitos discursos. Entre eles, o de um Fundo Monetário Internacional (FMI) que se distancia cada vez mais da ortodoxia mais férrea pela qual se destacou nos anos mais difíceis do chamado consenso de Washington: o órgão multilateral começou a crise exortando os países a “gastar o máximo que pudessem” e, quatro meses depois, pede que estudem a criação de impostos para os mais ricos.

“Os Governos devem tomar medidas para melhorar o cumprimento tributário e avaliar a aplicação de impostos mais altos para os grupos mais ricos e as empresas mais lucrativas”, afirmou nesta quarta-feira o diretor do Departamento de Finanças Públicas do FMI, Vitor Gaspar. “A renda resultante ajudaria a pagar serviços essenciais, como as redes de saúde e proteção social, em uma crise que afetou de maneira desproporcional os segmentos mais pobres da sociedade.”

Mais informações
Colapso da economia latino-americana será o segundo maior do mundo em 2020, após zona do euro
FMI melhora previsão econômica para o Brasil em 2020, mas estima recuperação mais lenta
Em meio à pandemia, a economia chinesa é a vencedora no jogo do tabuleiro econômico mundial

“Num contexto de pandemia” ―enfatizou o ex-ministro da Fazenda de Portugal na entrevista coletiva posterior à apresentação do relatório semestral de fiscalidade global do órgão― “é importante que aqueles que estiverem melhor contribuam para compensar os mais vulneráveis. E isso é algo que se aplica tanto individualmente em nossas sociedades quanto para a comunidade internacional em apoio aos países pobres.” Uma grande reforma do sistema tributário, admitiu Gaspar, não é uma tarefa fácil em meio a uma crise sanitária sem precedentes contemporâneos: “Vai levar tempo, mas acreditamos que é importante oferecer agora um guia sobre o que vai acontecer no médio e no longo prazo, anunciando agora as medidas”.

No curto prazo, entretanto, a grande preocupação do Fundo é que os países não abandonem “cedo demais” as medidas de ajuda fiscal. O déficit, completou o diretor do FMI, “não é o maior risco agora; a ajuda fiscal deve ser mantida, pelo menos, em 2021, tendo saúde e educação como prioridades”. “O que mais nos preocupa”, concordou horas depois a diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, “é que as ajudas sejam retiradas prematuramente: isso poderia provocar uma onda de falências e um grande aumento do desemprego. Voltamos a dizer aos Governos que não devem reduzir esses salva-vidas prematuramente”. No futuro, também na mesma linha traçada por Gaspar, Georgieva pediu aos Governos que “adaptem o sistema tributário para compatibilizá-lo com o mundo do século XXI e torná-lo mais equitativo”.

O risco de uma geração perdida nos países pobres

O termo década perdida soa muito familiar em muitos países latino-americanos, mas praticamente nada no restante dos países emergentes. Pelo menos até a chegada do coronavírus, que ameaçou destruir décadas de rendimentos ininterruptos nas principais variáveis sociais e econômicas de um grupo de nações no qual a maior parte do crescimento econômico mundial está concentrada há anos. A diretora-gerente do Fundo deu um passo além nesta quarta-feira ao alertar para o “risco de uma geração perdida” nos países de renda baixa, onde vive 1,5 bilhão de pessoas ―um quinto da população mundial― mas cujo PIB mal representa 4% do total.

O caso da África é paradigmático dessa mudança de tendência no bloco de nações em desenvolvimento. O continente, disse Georgieva, estava “no caminho certo” antes da pandemia. “Agora está se contraindo fortemente e em 2021, ao invés de crescer mais rápido que o resto do mundo, vai crescer mais devagar”, acrescentou. Também a Índia ―que deixou de ser “uma das economias mais vibrantes antes da crise” para estar mergulhada agora em um colapso do PIB de dois dígitos― “deve prestar toda a atenção na proteção dos mais vulneráveis; dar, definitivamente, mais oportunidades de seguir adiante até ter uma solução para a crise sanitária”, disse Georgieva.

Uma solução para a dívida em um contexto econômico difícil

Os níveis de dívida cresceram fortemente em todo o mundo, tanto nos países ricos quanto nos de renda baixa e média, mas as facilidades para obter financiamento a um preço acessível foram tudo menos simétricas. “Assim como as economias avançadas, muitas economias emergentes puderam injetar estímulos com dívida emitida a baixo custo. Isso, obviamente, ajuda. Mas há casos em que a solução é mais difícil devido aos altos níveis de endividamento que não lhes permitem ter acesso ao mercado ou que, se o fazem, é a um custo proibitivo”, descreveu Georgieva. “Nesses casos, se a dívida não é sustentável, esses países têm de agir com rapidez e de forma decisiva”.

Neste âmbito, a diretora-gerente do FMI colocou como modelo dois países latino-americanos resgatados pelo próprio órgão e que acabam de renegociar com seus credores privados para ganhar um pouco de oxigênio: Argentina e Equador. “Para o Fundo, melhorar a arquitetura da dívida é uma questão importantíssima para os próximos meses e anos, e precisamos garantir a participação do setor privado nos casos em que a dívida não seja sustentável.”

Nos últimos meses, reconheceu Georgieva, “a fotografia [da economia global] se tornou um pouco menos ruim”, mas o órgão que dirige continua projetando “a pior recessão desde a Grande Depressão”. “Mais do que nunca, devemos trabalhar de forma conjunta: uma crise como nenhuma outra requer uma recuperação como nenhuma outra. Quanto mais escura é a noite”, concluiu a diretora-gerente do Fundo, parafraseando o poeta russo Apollon Maikov," mais brilham as estrelas".

Mais informações

Arquivado Em