“Quando vai sair do armário?”: A obsessão histórica de vislumbrar homossexualidade em artistas heterossexuais
Shawn Mendes é o exemplo mais recente do ‘wishdar’, um fenômeno antigo que ficou incontrolável nas redes sociais: decidir sobre a sexualidade alheia de acordo com os próprios desejos
Os cantores Shawn Mendes (Ontário, Canadá, 23 anos) e Camila Cabello (Cojímar, Cuba, 24 anos), um dos casais do mundo pop mais admirados pela geração Z, anunciaram há duas semanas que terminaram sua relação. A notícia ainda dá o que falar e, como mandam estes tempos de publicidade, Mendes acaba de lançar seu novo single, It’ll Be OK (“vai ficar tudo bem”), que fala desse rompimento (ela ainda não lançou uma música nova, mas pintou o cabelo).
O resumo da notícia é: um homem que, pelo que se sabe, só teve relacionamentos com mulheres rompeu o mais recente deles, que também era com uma mulher. Não há, aparentemente, nenhum motivo para duvidar de sua heterossexualidade, até porque sempre que lhe perguntaram o cantor respondeu com franqueza que, se sua orientação sexual fosse outra, ele se sentiria à vontade em compartilhá-la, mas que não é o caso. “Havia desespero para que eu saísse do armário, o que é ridículo. Isso me irrita, porque conheço pessoas que são gays e não saíram do armário, e sei o quanto elas sofrem por isso. É completamente ignorante e insensível quem continua com essa merda”, reclamou em uma entrevista ao The Guardian há um ano. No entanto, as redes continuam cheias de insinuações e piadas que, meio a sério, meio de brincadeira, fazem referência à suposta homossexualidade do cantor, ainda mais agora, como se seu rompimento com uma mulher fosse a confirmação que alguns ansiavam.
Camila Cabello y Shawn Mendes terminan su relación.
— The Rubiew (@freetherubiew) November 18, 2021
*suena el tono de Grindr* pic.twitter.com/klRfosFcHG
O fenômeno não é novo. Por um lado, um coletivo faminto por referências as buscava em estrelas que podiam ser ou não ser, sem se importar muito com quanto havia de verdade nos rumores. Às vezes os rumores eram tão fortes que obrigavam os atores a realizar os famosos “casamentos de fachada” —ou seja, casamentos por conveniência que serviam para acabar com rumores incômodos e, além disso, podiam ser usados como ferramenta publicitária, como o de Rodolfo Valentino e Natalia Rambova ou o de Rock Hudson e Phyllis Gates. Mas, como se foi descobrindo em momentos mais abertos, muitos desses rumores tinham um fundo de verdade.
“No passado, estávamos desesperados por referências, a diferença é que antes ninguém saía do armário. Na época de Richard Gere, até as revistas de cinema se perguntavam se seria ou não seria”. Alberto Mira é escritor e professor universitário especializado em cinema, teatro musical e teoria e história queer. Ele lembra como, nos anos oitenta, Gere era alvo de rumores e piadas simplesmente porque ficava nu em seus filmes. “Os homens de verdade não tiravam a roupa”, assinala. Despir-se era —é— um ato de exposição, de passividade, até de submissão. Oferecer o próprio corpo para o consumo dos outros sem ter controle sobre como se realiza esse consumo. Despir-se fora da segurança da alcova para ser examinado, medido e pesado por olhos desconhecidos era algo que os homens não faziam. As mulheres sim, mas os homens não. O público ansiava por encontrar algo feminino em Richard Gere.
Algo parecido ocorria com outros atores: Tom Cruise, John Travolta e Rob Lowe. Apareciam na tela não como homens feitos, mas como coisas bonitas destinadas a ser consumidas. Os rumores corriam, talvez mais lentamente devido à ausência de redes sociais, mas cruzavam oceanos e atravessavam a barreira da língua: os comentários fervilhavam tanto em um salão de cabeleireiro de Minnesota, EUA, como no pátio de uma escola da pequena localidade de Majadahonda, no centro da Espanha. Qual é, então, a diferença?
“Isso nada mais é do que bullying, e transmite a mensagem [...] de que ser gay é algo digno de zombaria e fofoca”, comentou uma usuária do Twitter. “Como você se sentiria se todo mundo ficasse comentando se você é gay ou não?”, perguntou outra. Outro usuário contou: “Foi terrível a sensação de me dizerem que era gay, porque por um momento havia deixado a máscara cair um pouco e tinha feito algo levemente feminino”. A diferença é que agora há mais vozes na conversa, e existem lugares onde podemos perguntar o porquê dos rumores.
Por que Shawn Mendes é alvo desses comentários e Ed Sheeran, por exemplo, não? Porque Mendes expõe seu corpo, veste-se de forma extravagante e resiste a cair nos estereótipos da masculinidade. “Vivemos em um momento de transição. Existem pessoas que querem tirar outras do armário porque é a forma de manter as fronteiras entre o masculino e o feminino”, explica Mira. Em um momento em que essas barreiras se esfumam a ponto de desaparecer, há um setor que resiste a deixar que isso ocorra.
Harry Styles é, de certa forma, a antítese desse fenômeno. É claro que existem rumores a respeito dele —existem rumores a respeito de qualquer homem que se dedique ao mundo do espetáculo, pelo menos de qualquer um que seja magro—, mas não são tão difundidos. Talvez tenha a ver com o fato de que sua vida amorosa é muito mais pública e obedece ao estereótipo de grande conquistador. Talvez seja porque seu senso de moda tenha ido além do peculiar e entrado nos terrenos pantanosos da performance, mais do que na ambiguidade andrógina de Mendes.
Algumas das vozes que se levantam contra essa tendência chamam a atenção para o fato de que muitos dos que propagam os memes e as piadas são homens gays. O próprio conceito de outing —tirar uma pessoa do armário sem seu consentimento— é muito polarizador entre a comunidade gay. Para alguns, é aceitável fazer outing com pessoas que, além de esconder sua condição, utilizam uma posição de poder para perpetuar a discriminação contra o coletivo: deputados conservadores, pregadores evangélicos e outras figuras de autoridade foram expostos no passado, entende-se que como “troco” pelos crimes que cometeram contra seus semelhantes. Para outros, a maioria, o outing nunca se justifica.
Hoje é geralmente reconhecido o direito de qualquer pessoa LGBTQI+ de sair de seu respectivo armário em seu próprio ritmo, com seus tempos e em seus termos. Esse direito se esfuma quando falamos de celebridades: o cantor espanhol Pablo Alborán, por exemplo, levou anos para decidir tornar pública sua homossexualidade, e foi questionado durante todo esse tempo. Para Alberto Mira, a chave está no tempo que passou, e no fato de que as atitudes variaram muito desde que Alborán iniciou sua carreira. Naquela época, talvez a revelação pudesse tê-lo afetado de alguma forma, enquanto “no momento atual, ser ou não ser gay tem muito menos importância, pode não ser necessário sair do armário porque nenhum ato transforma você em uma coisa ou outra”. Em outras palavras, cada um é livre para interpretar a si mesmo como bem quiser.
É possível que o fundo da questão seja mais o de projetar desejos do que o de atribuir sexualidades: o colunista e líder de opinião LGBTQI Dan Savage fala em wishdar (junção de “desejo” e “radar”) —um trocadilho com gaydar (“gay” e “radar”), o suposto superpoder que permite que um gay reconheça outro gay. Savage diz que “não se vê muita especulação sobre a sexualidade de Louis C. K.”, dando a entender que esse comediante americano é uma pessoa menos desejável. Se Shawn Mendes fosse gay, ou Tom Cruise ou Richard Gere em sua época, seria uma joia na coroa da comunidade, um farol de beleza e plenitude, de sucesso e desejo. Se Shawn Mendes fosse gay seria, de certa forma, uma vitória. Se Louis C. K. fosse gay, seria, na melhor das hipóteses, algo indiferente.
O fenômeno oposto ocorre com o gayface: artistas que —seja pelo motivo que for— são considerados claramente heterossexuais, mas recriminados em certos círculos (principalmente no Twitter) que mantêm uma apresentação ambígua para tirar proveito do favorecimento do público gay-friendly. É difícil conciliar as duas ideias: que há uma série de homens homossexuais que mantêm isso em segredo para proteger a própria prosperidade e que, ao mesmo tempo, outros cavalheiros impiedosos, como James Corden, Darren Criss e o já mencionado Styles, mostram-se deliberadamente ambíguos e baseiam seu sucesso profissional em que as pessoas pensem, precisamente, que são homossexuais.
É possível que, no fundo, todas essas tendências aparentemente contraditórias representem esse momento de transição em que há forças puxando em todas as direções: gays que buscam um reflexo em um homem atraente, jovem e bem-sucedido; heterossexuais que querem rejeitar esse novo modelo de masculinidade e propor que nenhum homem como deve ser pode ser assim; pessoas não binárias entusiasmadas com as estrelas do pop que quebram barreiras sem que sejam nada disso. É possível, certamente, que no fim das contas todas essas forças estejam fazendo casualmente o mesmo barulho, provocando o mesmo dedo que aponta na mesma direção, mas com intenções completamente diferentes.
O que está claro é que as atitudes e os rótulos nos anos vinte do século XXI são muito mais amplos e flexíveis do que nunca: há homens que fazem sexo com homens, heteroflexíveis, bissexuais, pansexuais, e um monte de conceitos diferenciados por meras nuances que permitem que cada pessoa encontre seu lugar, se assim desejar, em um deles. Desde que essa pessoa não seja Shawn Mendes.
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