Frida Kahlo, muito além do clichê

Pesquisa lançada em livro revela os títulos originais de várias obras e desvenda novas influências e significados para superar os estereótipos que cercam a artista mexicana

‘Algumas furadinhas’ (1935), que tem sua origem em uma notícia sobre um feminicídio ocorrido na Cidade do México.

Não é fácil contar coisas novas sobre Frida Kahlo sem fugir do lugar-comum. A artista (Cidade do México, 1907-1954) é um dos maiores exemplos de uma obra ofuscada pelo mito da personagem. Frida, a autodidata surrealista. Frida, o ícone queer. Frida, a grife, o cartão-postal para turistas. Frida, o veado ferido, ...

Não é fácil contar coisas novas sobre Frida Kahlo sem fugir do lugar-comum. A artista (Cidade do México, 1907-1954) é um dos maiores exemplos de uma obra ofuscada pelo mito da personagem. Frida, a autodidata surrealista. Frida, o ícone queer. Frida, a grife, o cartão-postal para turistas. Frida, o veado ferido, a vítima de Diego Rivera. Separar a simplificação publicitária dos estereótipos é o objetivo de um novo livro, Frida Kahlo, obra pictórica completa (Taschen), apresentado nesta semana no México e que chegará à Espanha no fim deste mês. Trata-se de uma exaustiva investigação que reúne novas descobertas como os títulos originais de várias obras, sua inspiração na imprensa e nas revistas de cinema e novos significados para trabalhos hoje perdidos ou destruídos. Como El avionazo, visto pela última vez na década de 1930 nas mãos do ator Edward G. Robinson. Cruzando datas e contexto, o livro conclui que, a partir de um acidente aéreo, Kahlo representa metaforicamente seu próprio trauma pessoal depois da infidelidade de seu marido com sua irmã.

O volume, uma incomum combinação em grande formato entre o livro de arte e o ensaio teórico, se centra no percurso da obra, mas não foge da biografia como ferramenta de interpretação. A investigação, em todo caso, questiona a imagem de Kahlo como vítima de Rivera. “Sempre foi seu principal promotor e a cercou de um contexto cultural e intelectual decisivo para seu desenvolvimento”, aponta o editor do livro, Luis-Martín Lozano, historiador da arte e especialista em modernismo mexicano. Rivera era 23 anos mais velho e já um superastro da arte quando ambos se conheceram e se casaram. O casal moraria nos EUA, viajaria pela Europa, conheceria Breton, Kandinsky e Picasso. Então se divorciariam, voltariam a se casar e permaneceriam juntos até o final.

“A relação deles não pode ser explicada dentro dos parâmetros das convenções burguesas. Eram cúmplices e companheiros no estético e também como parceiros em suas aventuras sexuais”, acrescenta Lozano, detalhando também que Rivera foi um dos grandes protetores de Kahlo contra as interpretações enviesadas de sua obra. “Como teórico e grande artista, sabia a dimensão e o percurso da pintura de Frida. Outro clichê é ver a obra dela como uma mera reflexão autobiográfica.” Ou seja: como não pôde ter filhos, pintou um ventre estéril em Hospital Henry Ford. Como estava doente, criou A coluna quebrada. O trabalho salienta, entretanto, que durante os últimos anos de vida, na plenitude de suas faculdades artísticas, mas já muito afetada pela doença, ela continuou abrangendo uma ampla paleta de temas, como retratos de amigos, naturezas-mortas ou cenas de propaganda, em um inesperado ardor stalinista de última hora.


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Capa do ‘La Prensa’ com o acidente de aviação que inspirou ‘El avionazo’.

Outro clichê é sua condição de artista autodidata, quase intuitiva, por não ter passado por uma escola de arte. Filha de um fotógrafo de gabinetes da época de Porfirio Díaz, aprendeu no estúdio do pai as primeiras noções de composição, tratamento da luz e cor, segundo o ensaio. Suas primeiras obras, de fato, são marcadas pelos arquétipos do retrato fotográfico do começo do século XX. Isso é especialmente válido no Retrato de Ruth Stallsmith, de 1927, também em paradeiro desconhecido, na qual usou uma foto tirada por seu pai, que por sua vez tem fortes ecos das fotografias de atrizes das revistas do cinema mudo, uma de suas afeições de adolescência.

A imprensa diária foi outra de suas inspirações. Uma de suas obras mais conhecidas, Unos cuantos piquetitos (“alguns furinhos”), tem sua origem em uma notícia sobre um feminicídio ocorrido na Cidade do México. Uma mulher nua e ensanguentada por dezenas de navalhadas aparece estendida numa cama. De pé, uma figura masculina. A pesquisa descobriu que, ao ser exposta pela primeira vez, em 1938 em Nova York, chamava-se Apaixonadamente apaixonado, título original posto pela artista e carregado de significados. No texto da notícia do jornal, reproduzida no livro, o assassino confessou que a matou por ciúmes: “Ou minha ou do barranco”.


Interior do livro ‘Frida Kahlo, obra pictórica completa’.TASCHEN

No percurso pelas 152 pinturas, notam-se também influências pouco observadas até então, como a pintura colonial mexicana do século XVIII, o retrato do renascimento tardio italiano, a linguagem cubista e o estridentismo, uma vanguarda local próxima ao futurismo. “Apesar de não ter tido uma formação acadêmica, foi uma artista extremamente culta, com uma grande curiosidade e inteligência. Esta formação lhe permite uma grande flexibilidade para saltar entre tradições e registros”, acrescenta Lozano. Muito disso tinha a ver o contexto do seu tempo. Os começos de Kahlo, em plena etapa pós-revolucionária mexicana, coincidem com um dos períodos mais prolíficos da arte moderna no seu país. Assim nasce e se desenvolve sua pintura, uma reforma das tradições da arte popular através da experimentação com as vanguardas e o acervo da arte europeia.

Em 1937, André Breton, o pai do surrealismo, chega ao México convidado por Rivera. Quando conhece os quadros de Frida, sobretudo o Autorretrato dedicado a Leon Trotski, fica maravilhado. Fala de “um surrealismo puro”, do “raio de luz do pássaro quetzal”, como uma espécie de força primitiva brotando do nada. “Trata-se de uma visão muito etnocentrista”, aponta o editor do volume. “Frida aparece como um papagaio exótico em descoberto no meio da selva, deixando de lado todo o processo cultural vivido no México do qual ela foi parte.”

‘O veado ferido’ (1946), pintura a óleo de Frida Kahlo. TASCHEN

No começo da década de 1930, durante sua etapa em Nova York, Kahlo já tinha feito experiências com desenhos automatistas e cadáveres exquisitos, procurando inspiração na imprensa diária. Havia plasmado em pequenas lâminas de metal variados ex-votos mexicanos, representações populares da intercessão milagrosa do divino para solucionar qualquer mal cotidiano, que lhe servirão de sala de espera para aprofundar as técnicas de livre associação e do acaso objetivo do surrealismo. E desde 1927, uma década antes da visita de Breton, estava em contato com os postulados da Nova Objetividade, uma derivação do expressionismo alemão “cheia de cinismo e bestialidade”, como a definiu o crítico Franz Rohen. O mesmo que cunhou pela primeira vez o termo “realismo mágico”. Foi em 1925, e não aludia a nenhuma superstição tropical, e sim à facção mais conservadora daqueles vanguardistas alemães que Frida Kahlo tão bem conheceu.

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