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De menina órfã a pintora espanhola mais bem cotada no mundo

Lita Cabellut perambulou até ser adotada aos 13, quando descobriu seu talento para as artes plásticas

Lita Cabellut trabalhando em suas obras em seu ateliê.
Lita Cabellut trabalhando em suas obras em seu ateliê.MARC DRIESSEN

“Mamãe, vou ser artista”, disse Lita Cabellut aos 13 anos à sua mãe adotiva. Foi diante de As Três Graças, o famoso quadro de Rubens exibido no Museu do Prado. Residente na Holanda, a pintora espanhola contemporânea mais bem cotada no mundo é quase uma desconhecida em seu país. Até os 12 anos não sabia ler nem escrever. Era pura rua. Sua vida mudou quando seus pais adotivos a levaram ao Prado. Não disse que queria ser artista. Falou como algo decidido. Com o tempo, se deu conta “de que, sem função, o artista é uma coruja cega”. “De que a repetição não é um tabu e o lápis é implacável, e é preciso respeitá-lo porque essas são as ferramentas indispensáveis.” Compreendeu “que a paixão sem controle acaba sendo um desperdício de talento”. Começou a sério aos 19 anos na Rietveld Academie, de Amsterdã, onde chegou com uma bolsa, mas a primeira lição, da qual nunca se esquece, lhe foi dada por um pintor já ancião do El Masnou, em Barcelona. Um homem que não a deixava apagar e a obrigava a pensar bem antes de desenhar o primeiro traço.

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“Se soubesse o quanto aprendi com ele”, afirma ela agora, aos 55 anos, depois de ter entrado na lista dos artistas contemporâneos mais bem cotados do mundo, segundo a Artprice, a principal base de dados do mercado dos leilões. Entre 2014 e 2015 seu nome apareceu na posição número 333 de um total de 500. À frente dela só havia dois espanhóis, dois pesos pesados: Juan Muñoz e Miquel Barceló. Diz que para seu velho pintor do interior “deve ter sido uma tortura ensinar-me porque era uma menina difícil de controlar, que não queria perder um minuto”.

Uma menina cigana nascida na pequena cidade de Sariñena, na província espanhola de Huesca, e criada pela avó em Barcelona, onde perambulou até ser adotada aos 13 anos por uma família abastada. “É uma tremenda biografia, mas me dá pena que se explore o lado sensacionalista da mãe que me abandona. Sou muito mais que uma órfã. Sou a mãe de David, Arjan, Luciano e Marta. Uma lutadora em um meio masculino. Uma poeta original. Uma artista. Embora meu passado de menina de rua tenha sido muito útil para entender a vida", afirma rodeada de beleza em sua casa-estúdio de Haia.

Aerossóis coloridos que usa em suas obras.
Aerossóis coloridos que usa em suas obras.MARC DRIESSEN

Os mundos que inventava quando deixava a casa da avó lhe dizendo “é que aqui tem muita água” eram sua forma de escapar da realidade. Aquele gesto infantil parece hoje quase poesia do absurdo, mas sua trajetória lhe permitiu aproximar-se “do mais cruel e do mais suave sem medo e sem julgar ninguém”. Isso e a sorte de que “uns desconhecidos tivessem a ética de acreditar em mim e me ajudar”. Ela se refere aos pais adotivos, que a levaram ao Museu do Prado. “Quando você tem que sobreviver não pode crescer, e sem minha mãe adotiva eu não teria me desenvolvido.” O que lhe respondeu ao ouvir que já se via artista? “Que se eu estudasse, porque não sabia ler nem escrever com 12 anos, me arrumaria um professor de pintura.

Levanta-se e cruza um pátio sobre o qual chove com a monotonia típica da obra do poeta Antonio Machado e entra no estúdio. Um lugar amplo e luminoso, com o chão coberto de frenéticos respingos que recordam o esforço físico com que aborda suas telas: rostos surgidos de jogos de palavras como “espelhos cegos” (da religião e da tolerância), “tulipa negra” (a história da Holanda) ou então “trilogia da dúvida” (formada pela vítima, o poder e a ignorância). Não é só um exercício de estilo verbal. Sobretudo, o último. “A Europa não sabe para onde vai”, diz, para acrescentar: “O vento da política e o fogo da ignorância são dois elementos tão perigosos que, se se juntam, pode haver um incêndio histórico”.

Quase possuída por essas ideias escreve com sua equipe ensaios que a ajudam a compor os quadros em sua cabeça. Em seguida, chama seus modelos. “Tenho um grupo de pessoas que vêm a meu ateliê. Eu as visto, as coloco de forma adequada e as fotografo. Cada série, como a dedicada à estilista Coco Chanel ou à pintora Frida Kahlo, inclui telas de grande formato. Por isso tenho dois ajudantes, um jovem colombiano e outro, polonês, que preparam cores, pincéis, paletas, e movimentam meu cavalete gigante.”

A artista espanhola em seu estúdio em Haia, na Holanda.
A artista espanhola em seu estúdio em Haia, na Holanda.Marc Driessen

Cabellut trabalhou durante anos com especialistas em química para conseguir em suas telas o aspecto craquelado das pinturas antigas. É uma variação do afresco que parece dotar os rostos de pele. “Nas 12 camadas de diferentes componentes que uso para conseguir meus efeitos pictóricos às vezes me apoio na projeção e na serigrafia, em técnicas modernas com materiais de diferentes origens. Desde o óleo clássico com aerossóis –nunca acrílicos– e os pigmentos de sempre até a fita usada na street art. Enfim, sou uma roqueira da figuração de hoje, com admiração absoluta pelos mestres do retrato”, afirma. É sua homenagem a Velázquez, Goya e Ribera. E a Rembrandt, o holandês que a atraiu “em busca de um prisma especial de luz’.

Ainda persegue essa luz e lamenta ser pouco conhecida em sua terra, apesar de ter exposto em Nova York, Dubai, Londres, Paris, Veneza, Cingapura e Hong Kong. Em agosto de 2017 apresentará em Pesaro (Itália) a ópera de Rossini O Sítio de Corinto com La Fura dels Baus. Em outubro, mostras em Barcelona e A Coruña podem contribuir, diz, para que a Espanha lhe dê “por fim o beijo que desejaria”.

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