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O rapper ‘queer’ de 21 anos que desafiou a extrema direita norte-americana para chegar ao topo das paradas de sucesso

Lil Nas X, o artista criado no Twitter e no TikTok, soube transformar em máquina promocional perfeita a onda de ódio gerada por seu último clipe, uma hilária descida homoerótica ao inferno. Tem tudo para virar o hit do ano

Lil Nas X posa para a imprensa em um desfile de Tom Ford em Los Angeles, em fevereiro de 2020.
Lil Nas X posa para a imprensa em um desfile de Tom Ford em Los Angeles, em fevereiro de 2020.David Crotty (Getty Images)

Montero (Call Me By Your Name) é o novo single de Lil Nas X (nascido em 1999 com o nome de Montero Lamar Hill), e esta é, por assim dizer, a cronologia da canção. Em julho de 2020 publicou no Twitter um vídeo no qual aparecia dirigindo e ouvindo um trecho da música. O clipe, de apenas 38 segundos e que continua postado no seu canal, já soma mais de 21 milhões de reproduções. No intervalo do último Super Bowl, o rapper protagonizou um anúncio da firma de tecnologia Logitech no qual seu futuro single soava ao fundo. A final da NFL é uma das maiores vitrines mundiais para qualquer artista e, embora neste ano o evento tenha tido os piores dados de audiência desde 2007, beirou os 100 milhões de espectadores.

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A canção foi lançada em 26 de março, num disco com capa do espanhol Filip Custic, e já chegou ao número um no Reino Unido e Irlanda. O vídeo, um delírio kitsch (em seus três minutos de duração, o artista cai do céu ao inferno e termina, com suas botas de salto alto, seduzindo o próprio demônio), foi um sucesso que já superou 100 milhões de reproduções ―uma média de 10 milhões por dia. No Spotify, alcançou os 95 milhões de reproduções. Tudo isto fez o lançamento de Montero (Call Me By Your Name) ser qualificado por alguns especialistas da internet como exemplar. A edição norte-americana da Forbes se referiu a toda a operação como “uma guerra cultural que está dando resultados”.

A capa de 'Montero (Call me by Your Name)' do Lil Nas X, obra do artista Filip Custic.
A capa de 'Montero (Call me by Your Name)' do Lil Nas X, obra do artista Filip Custic.

“A chave do sucesso da campanha de Lil Nas X está na combinação de dois conceitos: o uso do humor irônico tão característico da Geração Z, à qual ele pertence, e a interação com a comunidade”, considera a especialista em redes sociais Janira Planes, autora da newsletter Truffle Season, sobre tecnologia, memes e cultura da internet. “Em seu Twitter abundam publicações virais citando ironicamente comentaristas conservadores, e constrói tuítes com a lógica memética da plataforma. No YouTube, se desculpa falsamente, agora que os vídeos de desculpa por escândalos são um gênero em si mesmos, por ter aparecido com tênis satânicos. Publica também vídeos extraoficiais que alimentam o discurso e oferecem novos sons com os quais brincar e criar conteúdo. No TikTok, aproveita o conteúdo gerado pelos usuários com sua canção e o republica em seu perfil.”

Mas quem é Lil Nas X?

Lil Nas X nasceu em 1999 em Atlanta (Geórgia). Com origem britânica por parte de pai e dominicana por parte de mãe, foi batizado Montero Lamar Hill em homenagem ao Mitsubishi Montero, o carro sonhado que sua mãe nunca teve. A família não possuía recursos econômicos para pensar em jipes japoneses. Quando Montero tinha seis anos, seus pais se separaram e ele passou a infância vivendo entre dois lares. Aos 9, se mudou definitivamente com seu pai para a localidade de Austell, na periferia de Atlanta, o que, conforme reconheceu anos depois a um repórter da Rolling Stone, talvez tenha lhe salvado a vida. “Aconteciam tantas coisas em Atlanta que, se eu tivesse crescido lá, talvez tivesse começado a andar com gente menos adequada”, disse.

Nesse ambiente suburbano, tedioso e solitário, refugiou-se na internet. E isso aconteceu em um momento-chave, justamente quando os memes começavam a ser considerados uma forma de entretenimento em si e, provavelmente, a mínima unidade de comunicação para a Geração Z. Montero mergulhou naquela tendência que, poucos anos depois, seria sua passagem para a fama.

Com 16 anos, o sonho de Montero era cavar um espaço na internet como criador de conteúdo. Mas não sabia por onde começar. No começo publicava vídeos engraçados no Facebook ou no desaparecido Vine, mas logo percebeu que se dava melhor no Twitter. Sob o pseudônimo de Nas, começou a acumular seguidores publicando piadas sobre sua estatura (mede quase 1,90 metro) ou reflexões irônicas sobre o escasso controle das armas nos Estados Unidos.

O rapper Lil Nas X, na cerimônia de premiação do Grammy em janeiro de 2020. / GETTY
O rapper Lil Nas X, na cerimônia de premiação do Grammy em janeiro de 2020. / GETTY Getty

Em 2018, largou os estudos com um novo sonho: dedicar-se à música. Seus pais não aceitaram a decisão e ele foi morar com sua irmã. Estava convencido de que a fama que tinha acumulado nos com seus vídeos dois anos anteriores poderia ajudá-lo a chamar a atenção no mundo musical. Acertou. Old Town Road é a canção de country rap que promoveu sua ascensão ao estrelato e que ele criou de forma totalmente caseira, sem gravadoras nem publicitários, fazendo uma campanha 100% independente e baseada no seu conhecimento do meio. O sucesso dessa música, a forma como ele se deu, é a chave para entender o que está acontecendo agora com Montero (Call Me By Your Name).

Um hit feito por puro tédio

Lil Nas X contou à Rolling Stone que começou a fazer música “por tédio” no final de 2018. Gastou apenas 50 dólares (282 reais) na criação de Old Town Road: 30 numa base que comprou pela internet de um produtor holandês, e o resto para gravar as vozes em menos de uma hora aproveitando a oferta 20 Dollar Tuesdays (terças a 20 dólares) de um estúdio de gravação de Atlanta, chamado CinCoYo.

O objetivo era que a canção viralizasse tanto no Twitter como na nova rede social da qual o mundo ocidental começava a falar: o TikTok. Montero sabia que sua principal arma eram os memes que criava para o Twitter. Lil Nas X é um personagem extremamente divertido e ácido, algo que sempre funciona. Por outro lado, quando estava preparando a canção, seus seguidores andavam obcecados pelo recém-lançado game Red Dead Redemption 2, que se passa no Velho Oeste. “O plano era usar Old Town Road na máxima quantidade de memes possível, até que ficasse na cabeça das pessoas”, contou à Rolling Stone. Conforme narrou, chegou a criar uns cem memes com o tema, até que finalmente deu o salto para o TikTok, e a coisa saiu do controle.

Os usuários dessa rede transformaram Old Town Road na canção do verão norte-americano de 2019 e a utilizaram maciçamente no #Yeehaw challenge, que consistia em publicar um vídeo transformando-se em caubói –ou cowgirl– depois de um dos clássicos jump cuts do TikTok (os cortes nos quais, depois de um salto, um usuário aparece com outro traje, tudo isso por magia da edição caseira).

O resultado foi um sucesso gigante: seu remix, com a participação de Billy Ray Cyrus, mito do country e pai de Miley Cyrus, chegou ao número um na lista da Billboard dos Estados Unidos e se sagrou como a canção de maior sucesso do ano naquele país. A música atual, Montero, nasce de um momento diferente (Lil Nas X já é uma celebridade), mas no fundo se baseou no mesmo sistema promocional: pôr a internet para trabalhar em seu benefício. Especialmente os seus inimigos.

Um plano de ataque com duas frentes principais

A letra da nova canção de Lil Nas X é um catálogo de perversões; e o vídeo, dirigido por Tanu Muino (autora do clipe de Juro que, da espanhola Rosalía) e pelo próprio artista, abusa das cores e da imagem digital para nos situar no epicentro do pecado. Ao princípio vemos como o cantor de Atlanta é tentado por uma serpente com rosto humano no Jardim do Éden, posteriormente é julgado em um tribunal diante do qual acaba morrendo, para então descer aos infernos montado numa barra de stripper, na qual faz uma dança sexy para o próprio diabo, a quem depois acaba liquidando para se declarar ele mesmo o novo Rei das Trevas.

Paralelamente ao lançamento do vídeo, em colaboração com a agência de publicidade/coletivo artístico MSCHF, Lil Nas X pôs à venda os Satan Shoes, uma edição de 666 pares personalizados do Nike Air Max 97 com um pentagrama dourado pendurado dos cadarços e que aparentemente levam uma gota de sangue humano misturado ao líquido vermelho que preenche seu solado. O preço de lançamento desse tênis é de 1.018 dólares (5.746 reais), em alusão a uma citação da Bíblia, Lucas 10:18. No versículo 18 do capítulo 10 do Evangelho de São Lucas se lê: “Jesus disse-lhes: ‘Vi Satanás cair do céu como um raio’”. A Nike acaba de paralisar a comercialização desse tênis, alegando que houve uma violação do copy-right de seu desenho original. Mas a empresa processou o coletivo MSCHF, não o próprio Lil Nas X, um ídolo juvenil popular demais para se meter com ele.

Mas isto não é nada em comparação com o que parecia ser o verdadeiro objetivo de Lil Nas X: que os conservadores norte-americanos fizessem campanha grátis para ele. O polarizado panorama político do seu país, a atitude abertamente sexual e queer (uma identidade de gênero e sexual diferente da heterossexual e cisgênero) do cantor no vídeo e o desavergonhado flerte com o satanismo que emana de toda a promoção provocaram na direita religiosa norte-americana o mesmo efeito que jogar um litro de sangue numa piscina cheia de piranhas. E onde essa gente toda foi se queixar? Isso mesmo, no Twitter, o lugar onde o autor de Montero melhor se movimenta.

Você me critica, eu encho o bolso

Na rede do passarinho, Lil Nas X vestiu o uniforme de tuiteiro e passou vários dias respondendo com ironia a todos os seus críticos, enquanto a popularidade do seu vídeo aumentava. Liquidava-os com uma resposta rápida e humilhante atrás da outra. A Kristi Noem, governadora republicana de Dakota do Sul: “Você é governadora e vem aqui tuitar sobre tênis? Vai lá fazer o seu maldito trabalho!”; ao pastor protestante Greg Locke: “Vou te samplear!”; à influencer direitista Candace Owens: “Você sabe que fez algo de bom quando essa mulher começa a falar de você” –e assim, rápido no gatilho, o rapper foi respondendo aos inúmeros críticos.

A canção, o vídeo e os tênis. Tudo foi uma grande isca para os profetas da ultradireita norte-americana, que a morderam dando uma oportunidade de ouro de aproveitar a polêmica, respondendo com o imediatismo próprio de um nativo das redes e, de passagem, enchendo os bolsos. Com mais de 12 milhões de seguidores no TikTok, desta vez Montero não precisou de ninguém para convencer centenas de usuários a publicarem vídeos com a sua canção. Na quarta-feira, ele mesmo lançou na rede chinesa o desafio #PoleDanceToHell, que já soma mais de 18 milhões de reproduções.

Ainda é cedo para saber se o sucesso de Montero (Call Me By Your Name) igualará o de Old Town Road. Por enquanto, parece que sua presença nas paradas pode se prolongar durante meses e se tornar de novo uma das canções do verão nos países anglo-saxões. Haja o que houver com ela, seu lançamento foi uma lição de como liderar a conversa na internet com algo ainda mais poderoso que as redes para adolescentes: a batalha política entre adultos.

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