Série desvenda a seita que levou bilionários e estrelas de Hollywood para a escravidão sexual
O documentário ‘The Vow’, da HBO, mergulha nos segredos do grupo NXIVM, que atraiu as elites dos EUA e atrizes famosas como Allison Mack, da série de TV ’Smallville’
Nos últimos tempos, as plataformas de streaming encontraram um novo filão: os documentários sobre seitas. Desde o popular Wild Wild Country até o espanhol El Palmar de Troya, passando pela última obra sobre o culto a um insólito líder ― Tiger King: Morte, Caos e Loucura ―, os espectadores parecem sentir fascínio pelo processo de encantamento e conversão das testemunhas que relatam sua versão dos fatos diante da câmera. Assistem à série com regozijo, convencidos de que isso nunca poderia acontecer com eles. A maior descoberta de The Vow ― mais recente exemplo desse subgênero, que acaba de estrear no serviço de streaming da HBO ― é justamente o de questionar tal afirmação. Como um enigmático guru conseguiu que atrizes de fama internacional, cantores, empresários, políticos e herdeiros de fortunas bilionárias se transformassem nos escravos de sua seita sexual, em pleno século XXI?
The Vow, dirigida pela dupla Jehane Noujaim e Karim Amer, acompanha através de seus nove capítulos as várias pessoas que fizeram parte do grupo NXIVM, para explorar a sinistra realidade por trás de seus atos criminosos. A organização, fundada em 1998, foi manchete dos jornais ao redor do mundo há alguns anos, quando as autoridades prenderam seus responsáveis, liderados pelo messiânico Keith Raniere, após ele ter atraído milhares de pessoas ao seu suposto grupo de autoajuda, com a promessa de liberação de todo o seu potencial. Conhecido entre os seguidores com o apelido de “Vanguarda” e citado pelo Livro Guinness dos Recordes como uma das pessoas de maior QI do mundo em 1989, Raniere foi detido, acusado e declarado culpado no ano passado pelos crimes de tráfico e exploração sexual, extorsão e posse de pornografia infantil, entre outros. A sentença será conhecida em outubro.
“Todos temos heróis, pessoas que admiramos. Pessoas singulares, pessoas solidárias, pessoas carismáticas, pessoas que nos comovem profundamente. Imagine que você poderia ser como elas.” Com essas palavras, Raniere defendia os benefícios do curso denominado como ESP (Programa de Sucesso Executivo), uma metodologia elaborada supostamente para aprimorar a experiência e a atitude de seus alunos. Um esquema de fraude piramidal (o valor das matrículas superava os quatro dígitos) que se transformava no ponto de entrada à organização e exigia que os alunos trabalhassem ativamente para os líderes se quisessem melhorar sua posição no organograma. “Você trabalhava 23 horas por dia, e ainda assim te perguntavam por que não fazia mais”, diz a atriz e cantora Bonnie Piesse, uma das primeiras seguidoras a denunciar os fatos.
O suposto guru, um arremedo de roteirista ermitão, especialista em informática do Vale do Silício e televangelista gentil, afirmava, com uma linguagem tão atrativa quanto vazia de conteúdo, que seu programa era baseado na ciência e que havia curado doenças como a síndrome de Tourette (transtorno de tiques crônicos e transitórios) e conseguido que crianças falassem dezenas de idiomas. “Era como se tivesse em meu poder a poção secreta do conhecimento”, diz no primeiro episódio da série Mark Vicente, cineasta que integrou a seita durante mais de 12 anos e cujo vasto material de áudio e vídeo sobre o grupo compõe agora a coluna vertebral de The Vow.
Embora a sede central da empresa estivesse na cidade de Albany, a pouco mais de duas horas de carro ao norte de Nova York, Raniere e seu círculo mais íntimo, comandado por sua sócia Nancy Salzman, conseguiram fazer com que o NXIVM captasse celebridades de Hollywood. Seu objetivo era atrair gente rica e poderosa para poder manipular e aplicar golpes. As atrizes de TV Allison Mack, Kristen Kreuk e Grace Park, Ana Cristina Fox e Emilio Salinas (filhos dos ex-presidentes mexicanos Vicente Fox e Carlos Salinas, respectivamente) e a herdeira da gigante de bebidas Seagram e grande financiadora do grupo, Clare Bronfman, fizeram parte da organização. Mack, famosa por seu trabalho na série Smallville, também se tornou uma das figuras mais relevantes do grupo e se declarou culpada de tráfico sexual. A atriz recrutava mulheres para obrigá-las a manter relações sexuais com Raniere e não hesitava em se dirigir pelo Twitter a famosas do calibre de Emma Watson e Kelly Clarkson, para tentar vender os benefícios de seu movimento.
Esse “incrível movimento feminino”, como Mack o descrevia, não era mais do que um subgrupo secreto dentro do NXIVM só para mulheres, chamado DOS (acrônimo do latim que significa algo como “Mestre da companhia feminina obediente”), através do qual Raniere estabeleceu uma relação de escravismo com seus acólitas. Dezenas de mulheres eram obrigadas a seguir dietas estritas e a ter sexo com o líder, além de usarem correntes de submissão e serem marcadas na zona púbica com um símbolo formado pelas letras K e R, as iniciais do guru. Para que nenhuma se atrevesse a denunciar, Raniere tinha em seu poder fotos comprometedoras das mulheres ou conhecimento de segredos inconfessáveis sobre elas, que utilizava como garantia e forma de chantagem. Como escreve Elías Camhaji no EL PAÍS, a seita também aplicava “técnicas de ‘terrorismo legal’, usando exércitos de advogados e muita influência para apresentar denúncias por acusações falsas em tribunais do México, dos Estados Unidos e do Canadá.”
Embora em 2003 uma reportagem da revista Forbes tenha exposto parte dos crimes ocorridos nos escritórios daquele suposto programa de crescimento pessoal, o NXIVM continuou operando livremente até 2017. O processo contra Raniere estimou que, das mais de 16.000 pessoas que fizeram os cursos, apenas 25 tiveram ganhos substanciais. Apesar das acusações, a bilionária herdeira Clare Bronfman continua apoiando seu guru. Em agosto passado, enviou uma carta ao tribunal federal de Nova York, que promulgará a sentença do empresário, para pedir clemência, alegando que “o NXIVM e Keith haviam mudado” sua vida “para melhor”.