Entrevista

Arundhati Roy: “Cresci com todas as meias-verdades e mentiras sobre Gandhi”

A renomada intelectual e ativista indiana compila em seu último livro, ‘Coração Rebelde’, 30 anos de reportagens e artigos combativos

Arundhati Roy no Hay Festival, no País de Gales, em junho de 2019.David Levenson/GETTY IMAGES
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Ela fala de Nova Délhi por videoconferência, vestida de rosa e com uma voz tranquila e o toque suave do sotaque indiano, que não esconde o caráter contundente, combativo, bem articulado e radical de suas abordagens. A escritora Arundhati Roy ganhou fama internacional com seu romance O Deus das Pequenas Coisas há três décadas e não parou desde então na denúncia por meio de bem documentados artigos e ensaios sobre as injustiças e hipocrisias que o sistema neoliberal esconde. Coração Rebelde (ainda sem edição no Brasil) reúne 19 textos nos quais Roy aborda dos testes nucleares à conversão de Nelson Mandela, Martin Luther King e Gandhi em símbolos capitalistas. A Gandhi dedica algumas páginas desafiadoras nas quais tenta separar mito e realidade.

PERGUNTA. A senhora comparou a covid-19 a um desses experimentos com substâncias químicas que permitem iluminar coisas que estavam no escuro. Em que ponto estão as coisas?

RESPOSTA. O que aconteceu nos fala da crise do capitalismo e do neoliberalismo e da destruição de qualquer mínimo vislumbre de sociedade igualitária. Na Índia, tudo foi tão mal planejado e executado que há uma gigantesca crise de fome e desemprego, um colapso total. Além disso, neste mês tivemos a revogação do estatuto especial da Caxemira e a anexação. A retórica do Governo foi tão agressiva contra a China e o Paquistão que o Exército foi deslocado para a fronteira. A economia não mostra nenhum sinal de recuperação. É uma crise enorme. E continuam espalhando o ódio aos muçulmanos prendendo intelectuais, acadêmicos, advogados; assediando jornalistas que não seguem as mentiras do Governo. É um momento muito triste.

P. Neste verão do Hemisfério Norte foi o aniversário de Hiroshima e Nagasaki. A senhora escreveu há mais de 20 anos sobre os testes nucleares da Índia.

R. Sim, e neste momento há três potências nucleares, China, Paquistão e Índia, em um confronto cara a cara. E não se trata apenas sobre se haverá ou não uma guerra ou se será nuclear, mas sobre o efeito que essas armas tiveram na mente das pessoas. Os testes foram o momento em que esse nacionalismo hindu, que promove a islamofobia e considera que tem licença para matar e linchar na rua, passou da oposição a ocupar o Governo.

P. Como as redes sociais afetaram o cenário político e social que a senhora descreve há anos?

R. As redes ampliam as falsidades dos meios de comunicação, mas também são a plataforma na qual avança a pequena resistência que sobrevive. Não são um espaço totalmente cooptado pela direita, mas é aterrorizante o poder que têm, por exemplo, nos processos eleitorais e como o público é manipulado com a disseminação premeditada de notícias falsas. Mas tudo isso funciona em combinação com o poder da mídia estabelecida.

P. A senhora descreve a Índia como um “povo antigo que aprende a viver em uma nação recente”.

R. Eu a vejo como mais do que um país, como um subcontinente, com mais de 20 línguas oficiais e 700 dialetos, que tenta ser um Estado-nação e nesse processo inflige uma enorme quantidade de violência. Atualmente o nacionalismo hindu coloniza os povos indígenas, dos quais expropria terras e expulsa. Não houve um dia desde que a Índia obteve sua independência, em 1947, em que o Exército não tenha sido mobilizado nas fronteiras contra seu próprio povo.

P. Que efeito está tendo o nacionalismo nos EUA com Trump?

R. Conhecemos a história do Vietnã, do Irã e de qualquer país da América do Sul ou no Iraque. Não precisávamos das redes sociais para ver mentiras impressas nos jornais respeitáveis, como a história das armas de destruição em massa de Saddam. Agora estamos diante do surgimento de uma nova ordem mundial. É o fim da hegemonia mundial norte-americana.

P. Como a senhora lida com as críticas que seus escritos recebem? Seu ensaio sobre grupos maoístas foi ferozmente atacado.

R. Não sou maoísta, mas falo que forças paramilitares pretendem derrocar as guerrilhas em lugares onde 99% dos indígenas estão sob a influência de organizações maoístas. Pelo menos 40% deles são soldados dedicados à causa porque viram suas aldeias arrasadas, estupros e encarceramentos em massa. O que esperam que eles façam? Querem que sejam como Gandhi? Ele precisou de um grande palco e de muito público. Você não pode fazer greve de fome se já estiver passando fome.

P. Suas críticas à Índia vêm de um impulso patriótico?

R. Não, para começar porque não penso na Índia como um país. Trata-se mais do amor que sinto pela paisagem daqui ou pela música, pela complexidade e loucura que existe. E ainda assim desprezo o oposto, que também ocorre: a rigidez, a hierarquia, as castas, a pregação do nacionalismo hindu. Não acredito que você possa se enfurecer com algo se também não amá-lo profundamente. Se eu não me importasse com este lugar eu iria morar em qualquer lugar, mas quero estar aqui, lutar aqui, amar aqui, quero fazer tudo aqui.

P. A senhora criticou sem hesitação a figura de Gandhi, denunciando as mentiras que rodeiam esse “santo”.

R. O Doutor e o Santo é o texto que mais me assustou escrever porque ia contra essa pessoa cuja história doutrinou falsamente o mundo. Eu também cresci com todas as meias-verdades e mentiras sobre Gandhi. Mas não sei se as pessoas de fora podem realmente entender o horror das castas [que Gandhi aceitou].

P. Isabel Wilkerson publicou recentemente um livro no qual tenta explicar o racismo nos EUA como um sistema de castas. É um tipo de apropriação cultural?

R. Não li o livro, mas não acredito que seja tão simples aplicar as castas ao racismo, embora algumas conexões possam ser feitas. As castas estão ligadas ao hinduísmo, à religião. É algo muito calibrado que não permite nenhuma forma de solidariedade.

P. Como a senhora entende os protestos contra o racismo e o movimento Black Lives Matter?

R. Nos EUA, a maior preocupação é que a energia dessas manifestações ―que são maravilhosas e vão mais longe porque falam de desigualdade de classes sociais― possa acabar sendo transferida para a campanha eleitoral e terminar com a vitória de um candidato democrata. Assim como é importante derrotar Trump, também é importante saber que esses protestos não podem ser simplesmente para colocar Joe Biden na Casa Branca. Pode ser um efeito colateral, mas não o principal.

P. O que pensa do grito feminista que percorreu o mundo nos últimos anos depois do MeToo?

R. O MeToo foi uma explosão de fúria, mas não sei se é um movimento. Na Índia existem milhares de mulheres que são assassinadas na floresta, são mutiladas e estupradas para ficarem com as terras, mas as profissionais do feminismo não consideram isso uma luta feminista. Levantaram questões muito importantes, mas não questionam a economia que existe por trás disso, que permitiu esses abusos. Minha mãe desafiou e conseguiu mudar uma lei que não permitia que as mulheres herdassem mais de um quarto da propriedade de seus pais.

P. A senhora herdou o espírito de luta dela?

R. Saí de casa com 16 anos. Minha mãe é uma mulher extraordinária, mas a sociedade em que vive é muito conservadora. Ela é um fenômeno, mas eu sempre estive fora, cresci com as pessoas dizendo que não sabiam quem era meu pai e que eu não me casaria. Eu não tinha nada a ganhar com o conformismo.

P. A senhora escreve ensaios combativos há quase 30 anos e alerta sobre o colapso ao qual o sistema estava caminhando. Que poder as palavras têm? Como mantém a esperança?

R. Não se pode tornar alguém grandiloquente que fica deprimido porque seu trabalho não resultou na queda do capitalismo. Como disse uma vez a alguém, é como se fosse uma formiga atravessando a estrada com muitos caminhões passando, não dá para ficar deprimido! Como ser humano, você tem de entender que está em uma escala diferente das coisas sobre as quais escreve. E todos nós encontramos motivos para rir e amar.

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