Mortes por ‘selfies’ entram na mira dos epidemiologistas
Estudo revela que uma pessoa morre por semana, em média, desde o começo do ano tirando fotos em lugares arriscados. Praia catarinense está entre os 10 lugares mais perigosos do mundo, segundo os autores
Vacinar-se contra febre amarela e se proteger da malária são duas precauções clássicas para quem viaja a determinados destinos turísticos. A estes cuidados, convém somar o de não cair na tentação de tirar selfies em cenários tão espetaculares quanto arriscados. É o que demonstra um estudo da Fundação iO, especializada em Medicina Tropical e do Viajante, que revela que, entre janeiro de 2008 e julho de 2021, pelo menos 379 pessoas morreram por este motivo – uma a cada 13 dias, em média. A tendência é ascendente e, após um breve parêntese por causa da pandemia, ressurgiu com força nos primeiros sete meses do ano, quando houve 31 acidentes mortais – um por semana –, apesar das numerosas restrições de viagens ainda em vigor.
“É um problema emergente que, pelas dimensões que adquiriu, já pode ser considerado de saúde pública. O estudo nos ajudou a dimensioná-lo, o que é o primeiro passo para tomar medidas para enfrentá-lo”, afirma Manuel Linares Rufo, presidente da Fundação iO e pesquisador principal do estudo, o maior já feito até hoje. Entre os mortos, 141 eram turistas e 238 eram da população local, o que evidencia que a tendência a assumir riscos é muito maior entre os primeiros, levando-se em conta que apenas uma pequena fração da população mundial está de viagem em um dia determinado.
Os países que mais registraram mortos são a Índia (100 casos), os Estados Unidos (39) e a Rússia (33), numa lista formada por mais de 50 Estados e em que o Brasil, com 17, compartilha o quinto lugar. Espanha e Austrália estão empatados em sexto, com 15 casos cada. Embora este não seja um dado incluído no texto, a ser publicado na revista Journal of Travel Medicine, os autores também identificaram os 10 lugares do mundo com mais mortes – entre os quais um deles fica no Brasil, a praia de Penha (SC). Os demais, sem estarem ordenados por número de casos, são as cataratas do Niágara (na fronteira entre os EUA e Canadá), o Glen Canyon (EUA), o Charco del Burro (Colômbia), a catarata de Mlango (Quênia), os montes Urais (Rússia), o Taj Mahal, o vale de Doodhpathri (ambos na Índia), a ilha Nusa Lembongan (Indonésia) e o arquipélago de Langkawi (Malásia).
Apesar da magnitude destas cifras, o estudo só reúne a parte mais visível do problema, devido a suas limitações. Os dados foram reunidos mediante uma ferramenta de inteligência epidemiológica chamada Heimdllr-Project, que rastreia todas as informações publicadas sobre estes fatos – notícias, comunicados – em seis dos idiomas mais utilizados no mundo: inglês, espanhol, francês, alemão, português e italiano. Isto deixa de fora os casos que não chegam aos meios de comunicação e as notícias que só foram publicadas em outras línguas. O trabalho tampouco inclui um grande número de acidentes graves, mas não letais.
As quedas de lugares como cataratas, precipícios e telhados são, de longe, a causa que mais frequentemente acaba transformando a tão desejada foto em tragédia, com 216 casos. Seguem-se os acidentes relacionados com meios de transporte (123), os afogamentos (66), as armas de fogo e eletrocussões (24 cada tipo) e ferimentos ao se fotografar com animais selvagens (17). Por idades, os acidentes mortais são mais frequentes entre adolescentes de até 19 anos (41% do total) e jovens na faixa dos 20 a 29 anos (37%). A idade média dos mortos é de 24,4 anos, e os homens são 60% das vítimas.
As notícias sobre esses fatos têm grande repercussão nos últimos anos, especialmente quando as vítimas são pessoas muito conhecidas nas redes sociais. Um dos casos mais recentes foi o da influencer Sofia Cheung, de 32 anos, conhecida por divulgar imagens arriscadas em seus perfis. Faleceu em julho, ao escorregar e cair numa cachoeira em Hong Kong. O último caso conhecido na Espanha é mais recente e, portanto, o estudo não chega a incluí-lo. Ocorreu em 14 de setembro, no castelo de Benidorm, na costa mediterrânea, onde uma turista ucraniana caiu de 30 metros de altura.
Mais casos recentes ocorridos no país são a morte de outra turista, uma jovem norueguesa de 24 anos que em maio caiu de um terraço no nono andar de um prédio em Marbella; uma mulher de 28 anos enquanto se fotografava com amigas numa cobertura de Barcelona, em novembro de 2020; e uma adolescente de 14 anos que caiu de uma claraboia em Madri em março deste ano.
Zonas “livres de selfies” na Índia
“A ideia de fazer o estudo surgiu ao observar o notável impacto das notícias sobre estas mortes e a escassa percepção do problema na literatura científica e nas recomendações feitas pela medicina de viagem”, explica Linares Rufo. “Em certa medida, o trabalho é herdeiro da pandemia. Com ela se desenvolveram muitas ferramentas que agora podemos utilizar para fenômenos como este e ajudar a enfrentá-los. Uma opção seria identificar os lugares mais perigosos e avisar sobre isso a quem os visita, algo em que deveriam se envolver também os fabricantes de celulares, programadores de aplicativos e administrações públicas. Em nível local, deveriam ser empreendidas ações de formação”, acrescenta o pesquisador.
A Prefeitura de Benidorm começou a fazer frente ao fenômeno. “É algo que se tornou mais evidente após do ocorrido em setembro, mas em que já estávamos trabalhando. A Polícia Local inclui a vigilância dos pontos mais sensíveis em suas reuniões diárias de segurança, e os agentes intervêm perante a mínima conduta de risco, inclusive utilizando os drones que vigiam lugares muito frequentados. Agora queremos estudar como introduzir este assunto nas palestras que os agentes fazem nas escolas para lhes transmitir a necessidade de evitar essas condutas”, diz um porta-voz. Na Índia, o elevado número de mortes levou a declarar determinadas zonas como “livres de selfies”.
A socióloga Liliana Arroyo, autora do livro Tú no eres tu ‘selfie’ (“você não é a sua selfie”, subtitulado 9 segredos digitais que todo mundo vive e ninguém conta), destaca que estas fotos, como as redes sociais, “se tornaram uma forma de relação e comunicação social a mais, que, obviamente, na grande maioria dos casos é uma forma saudável de expressão, que pode ser muito criativa e uma via para compartilhar inquietações e afetos”.
Para compreender como esta forma inócua de relação pode levar a comportamentos de risco, Arroyo aponta os seguintes fatores: “As redes sociais premiam os conteúdos mais radicais, porque funcionam com dinâmicas nas quais estes conseguem chamar mais a atenção. O prêmio de fazer uma selfie muito arriscada é a valorização social, e isto lhe dá uma sensação de adrenalina com cada like que você recebe. Isto, por sua vez, leva algumas pessoas que necessitam mais desta validação social a entrarem em novas vias na busca por limites e novas recompensas, e aí está a capacidade de cada um de calibrar se esse prêmio vale a pena pelo risco ou não”.
O psiquiatra Enrique García Bernardo inclui o aumento das mortes por selfies em um fenômeno global no qual as redes tiveram um papel importante: “Estas imagens se tornaram uma forma rápida de obter um reconhecimento imediato, fácil e superficial. O que mais se valoriza são os seguidores e curtidas, e não o que se obtém com algo mais elaborado. É um mecanismo social de reafirmação que se espalhou nos últimos anos. Sobre isto, há pessoas mais propensas a incorrerem em condutas de risco. Segundo as categorias ligadas ao temperamento definidas pelo [psiquiatra norte-americano] Robert Cloninger, são aquelas que mais tendem a procurar novas sensações, e cujo comportamento está menos condicionado por evitar danos”.
Tirar a foto mais ousada não é o único risco que algumas pessoas assumem. A taiwanesa Gigi Wu era conhecida por subir montanhas de biquíni e fotografar-se nos cumes, frequentemente nevados, em chamativas composições visuais. Morreu em janeiro de 2019 após cair de um barranco, mas não foi a queda que a matou. Apesar dos ferimentos nas pernas que a impediam de se mover, conseguiu chamar os serviços de emergência. Quando estes chegaram, entretanto, a influencer havia morrido de hipotermia, devido aos trajes inapropriados.
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