Os doentes de covid-19 que se curam, mas não se recuperam

Um crescente número de positivos sofre uma versão longa da doença, com sintomas ou sequelas que podem durar vários meses

Profissionais sanitários transferem um paciente em Madri, em 23 de outubro.Olmo Calvo (EL PAÍS)
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Entre os mistérios que cercam este coronavírus está o da versão longa da covid-19. Um crescente número de pacientes com resultados positivos apresenta sintomas ou sequelas muito tempo depois de darem negativo. O problema é que, dada a urgência dos novos casos, quase não há um seguimento dos antigos. Um recente estudo lança um pouco de luz: entre 10% e 20% dos doentes tem esta espécie de covid persistente. Alguns casos são tão extremos que ainda manifestam fadiga e problemas respiratórios sete meses depois da cura. E existem outras diferenças: a maioria é de mulheres e não precisou de internação.

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Exceto nos casos que se complicam e acabam na UTI, a maioria dos pacientes de covid-19 se recupera em menos de duas semanas. Exatamente em torno de 11 dias após apresentarem os primeiros sintomas. O acompanhamento de mais de 4.000 casos positivos do Reino Unido, Suécia e EUA confirma que 38% deles se recuperam em até seis dias. Entretanto, 558 pacientes (13,3%) continuavam tendo problemas após quatro semanas. Deles, mais de um terço ainda se queixava de diversos sintomas 56 dias depois. Inclusive, um percentual significativo (2,5%) superava os três meses. O estudo ainda não terminou, e seus autores preveem uma persistência ainda maior.

A pesquisadora Claire Steves, do King’s College de Londres, principal autora deste estudo, está convencida de que as cifras são ainda maiores. Além de muitos doentes da primeira onda nunca terem sido detectados, no seu trabalho eles sempre zeravam o contador quando um dos afetados deixava de ter sintomas, mesmo que, após alguns dias, tivesse uma recaída. “Nossa classificação da duração da doença não contemplava as recaídas”, observa. Por outro lado, o seguimento ainda não terminou, então ela teme que em muitos casos os sintomas persistam por mais tempo.

O estudo de Steves incluía positivos que tiveram que ser hospitalizados, mas na maioria dos casos o curso da enfermidade foi leve e a passaram em casa. Como na versão curta, a covid-19 de longa duração atinge com força os idosos: os maiores de 70 anos tinham o dobro de chances de sofrê-la. A diferença é que as mulheres tinham até 50% mais probabilidade de desenvolver a covid persistente. Quanto às patologias prévias, a única que parece elevar o risco é a asma.

“Alguns dos sintomas são inesperados”, comenta o neurologista e membro da Sociedade Espanhola de Neurologia (SAN) David García Azorín. “Se você passa pela covid, é lógico que tenha problemas respiratórios. Mas há outros, como a dificuldade para se concentrar e o cansaço, que são difíceis de medir e se torna necessário fazer um acompanhamento ao longo do tempo”, acrescenta. O problema é, justamente, a falta desse tempo.

García Azorín, que não participou do estudo britânico, está realizando pesquisas próprias no Hospital Clínico de Valladolid. Sua equipe acompanha 2.098 pacientes, uma quarta parte dos quais precisou de internação, enquanto os demais tiveram atendimento ambulatorial. Apesar de terem observado uma remissão ao longo do tempo, há sintomas, como a anosmia (perda de olfato), que persistem em 20% dos pacientes num período de três meses.

No estudo britânico, os sintomas mais destacados são os problemas respiratórios (dispneia), cansaço, anosmia e dor de cabeça. Todos são habituais na versão curta da doença. Entretanto, parece que há alguns específicos nos curados não recuperados. Em comparação com os que se curaram em menos de duas semanas, 6,1% dos primeiros apresentavam problemas cardíacos, frente a 0,5% dos segundos. Outras manifestações diferenciais foram zumbidos, dor de ouvido, perda de memória e sensações corporais estranhas, como fisgadas e intumescimento.

“Temos um caso, um maitre de restaurante, cujo trabalho era estar atento, que tudo estivesse bem com os clientes, e meses depois de curado diz que não consegue mais fazer o que fazia”, comenta o chefe do serviço de neurologia do Hospital Universitário de Albacete, Tomás Segura. “Em nosso consultório não vemos agora os pacientes que acabaram na UTI, e sim os que não foram para o hospital”, acrescenta. Segundo suas estimativas, baseadas no registro Albacovid, entre 15% e 20% de seus estudados mostravam transtornos neurológicos tempos depois de se curarem. O chamativo é que, nos casos em que foi possível fazer um teste cognitivo, como com o maitre, “não vemos nem sinal da doença”.

O pneumologista Germán Peces Barba, vice-presidente da SEPAR (Sociedade Espanhola de Pneumologia e Cirurgia Torácica), lamenta que haja tão poucos estudos. Em sua experiência diária, ele observou uma relação entre a gravidade da doença e a duração das sequelas, tendo um caso que se contagiou em março e os sintomas ainda persistem.

O projeto mais ambicioso para conhecer a relevância da covid-19 persistente na Espanha está sendo feito pela Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família (SEMG). “É difícil determinar sua incidência, já é complicado saber a incidência global”, comenta a médica Pilar Rodríguez Ledo, vice-presidenta e diretora de pesquisa da SEMG. Por meio de um estudo, seu grupo acompanha mais de 2.000 pessoas que passaram pela doença. Estão prestes a publicar seus resultados finais, mas pode antecipar que o número de casos da versão longa “está mais perto de 20% que de 10%”.

Este trabalho permitiu a Rodríguez Ledo distinguir dois grupos bem diferenciados. Em um, o dos pacientes graves, a maioria tinha idade avançada e patologias prévias. As sequelas vêm deste quadro. “Mas aqui estamos falando de gente jovem (idade média de 44 anos), sem problemas prévios, que não teve que ser hospitalizada e em sua maioria (79%) é mulher. São pessoas com o PCR negativo, mas com os mesmos sintomas de quando estavam na fase aguda da doença”, relata a doutora.

Mas são sintomas ou sequelas? A definição canônica diz que os primeiros são paralelos à enfermidade, e as segundas são consequência. Mas o coronavírus confunde tudo. Os problemas respiratórios são uma clara sequela de um vírus que ataca especialmente as vias respiratórias inferiores. Mas há outros fenômenos, como a afetação dos sentidos, que deveriam remeter após passada a fase aguda. Para Rodríguez Ledo, essa é uma distinção difícil de fazer no caso da covid-19. García Azorín recorda que, eliminado o vírus, “outra coisa é a duração da ativação do sistema imunológico, e a maioria destes sintomas é provocada por isso ou por falhas orgânicas”. Já Peces Barba destaca que alguns sintomas, como a ansiedade e a depressão, “não têm pano de fundo orgânico”. E Tomás Segura fala em “sequelas sociais, mais que pela covid”.

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