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Lições da paciente zero da Alemanha: infectar-se por passar o saleiro na cantina e outros perigos da covid-19

Pesquisadores reconstroem minuciosamente a cadeia dos primeiros contágios registrados no país, em uma empresa da Baviera

Sede da empresa Webasto em Stockdorf, perto de Munique, onde foi detectado um foco de coronavírus em janeiro.
Sede da empresa Webasto em Stockdorf, perto de Munique, onde foi detectado um foco de coronavírus em janeiro.MICHAEL DALDER (Reuters)
Ana Carbajosa
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Na manhã de 27 de janeiro, um e-mail que logo daria a volta ao mundo aguardava na caixa de entrada dos escritórios da Webasto. A profissional que havia viajado da China na semana anterior para reuniões nessa fábrica alemã de autopeças informava que estava com covid-19. Horas mais tarde, um funcionário de empresa dava resultado positivo num exame, e as autoridades sanitárias da Baviera notificavam o primeiro caso de contágio entre humanos fora da Ásia. O coronavírus tinha chegado à Alemanha.

Cientistas alemães reconstruíram agora nos mínimos detalhes o que aconteceu naqueles dias, através de entrevistas, documentos e da análise do genoma do vírus. Esmiuçaram a forma como surgiu um foco que a empresa e as autoridades conseguiram frear a seco. Foram 16 pessoas contagiadas, todas já recuperadas, nesta singular historia de sucesso. A reconstrução publicada na revista Lancet, junto com o relato do que aconteceu naquelas horas na empresa infectada, lança luz sobre o momento exato da transmissão em cada caso, mas também sobre a importância da detecção e atuação precoce.

A paciente zero, procedente de Xangai, tinha pousado na Alemanha no domingo, 19 de fevereiro, para uma série de reuniões na sede mundial da empresa para a qual trabalha. Antes de viajar à Baviera, tinha recebido a visita de seus pais, que vinham de Wuhan, naquele momento o epicentro da epidemia na China. Quando chegou à Alemanha, a paciente zero estava contagiada, mas não sabia.

Na segunda-feira seguinte, apresentou-se na sede da Webasto em Stockdorf, perto de Munique, para comandar um treinamento de dois dias. Na noite do dia 22 voou de volta para Xangai e já no avião sentiu que não estava bem. “No tempo que esteve aqui não ficou mal. Talvez um pouco cansada, o que atribuiu ao jet lag”, recorda agora Nadine Schian, vice-presidenta e chefa de comunicação da Webasto, que participou desde o primeiro momento da célula de crise. Já na China, a paciente foi ao médico e, no dia 26, recebeu o resultado positivo de coronavírus. Em seguida enviou um e-mail à empresa na Alemanha, mas, por causa do fuso, a mensagem só foi aberta no dia 27.

“A primeira coisa que fizemos foi informar a toda a empresa”, recorda Schian. A paciente zero enviou uma lista de pessoas com quem havia estado em contato durante sua estadia na Alemanha. Os empregados que haviam ficado cara a cara durante mais de 15 minutos com a pessoa contagiada elaboraram outra lista. A empresa informou também ao taxista que transportou a paciente zero, ao hotel onde ela dormiu e ao restaurante onde ela jantou. Decidiram conceder uma entrevista a um jornal para que todos que pudessem ter estado em contato com a paciente zero soubessem e se apresentassem. “Naquele momento não havia tanta informação sobre o que era preciso fazer. Aprendemos muito neste tempo”, pensa Schian agora.

Ainda no dia 27, confirmou-se o primeiro positivo entre os funcionários. O indivíduo tinha estado com a paciente zero em uma reunião e, durante o fim de semana seguinte, se sentiu meio gripado, mas mesmo assim foi trabalhar na segunda-feira pela manhã. Ao chegar, viu as notícias na Intranet e seu chefe o mandou para casa. Ao dar positivo, elaborou-se outra lista com as pessoas que tinham estado em contato com ele nos 14 dias anteriores. Isso era na segunda-feira, e na terça-feira os responsáveis pela empresa decidiram fechar e desinfetar a sede, onde trabalham 1.200 pessoas. Nove deram resultado positivo na empresa, e outras sete se contagiaram por causa do contágio inicial na Webasto. O foco, ao todo, resultou no contágio de 16 pessoas, sendo 12 homens e 4 mulheres.

Holger Engelmann, executivo-chefe da Webasto, depois da reabertura da empresa.
Holger Engelmann, executivo-chefe da Webasto, depois da reabertura da empresa. picture alliance (dpa/picture alliance via Getty I)

A análise dos pesquisadores alemães indica que o paciente 1 se sentou ao lado da paciente zero em uma reunião de uma hora, numa sala de 12 metros quadrados. O sequenciamento do genoma do vírus do paciente 2 permite também concluir que a paciente zero lhe transmitiu a doença. O paciente 3 esteve em contato com o 1, quando ambos trabalharam juntos no mesmo computador durante um breve momento. O paciente 3 se sentou mais tarde junto ao paciente 12 durante 90 minutos em um encontro privado. O paciente 12 voou para a Espanha em 28 de janeiro, onde foi isolado em um hospital das ilhas Canárias, dois dias mais tarde. O paciente 4 também teve contato direto com a paciente zero.

Estabelecer o contágio entre o paciente 4 e o 5 foi mais complicado. Não tinham estado juntos em reuniões ou em qualquer outro contexto. Exceto uma vez. Foi na cantina da empresa. Estavam sentados de costas um para o outro. O número 5 se girou e pediu o saleiro ao número 4. Isso foi dois dias antes de o paciente 4 desenvolver os sintomas. “O sequenciamento do genoma foi utilizado para confirmar o vínculo epidemiológico e esclarecer o evento transmissor nos casos em que o relato do contato fosse ambíguo”, afirmam os autores do artigo. Eles dizem que a análise do sequenciamento do vírus de ambos os pacientes os leva a concluir que o episódio do saleiro pode ter causado a transmissão. Os restantes entre os 16 pacientes foram pessoas que tinham estado em contato com os pacientes 0, 1, 2 e 5 e que tinham participado de reuniões, a curta distância e durante mais de 15 minutos e, no caso do 5, também a sua família, que foi infectada.

Desde o primeiro dia, as autoridades sanitárias locais decidiram que as pessoas consideradas de alto risco, ou seja, que tinham estado na presença de alguns dos infectados pelo menos durante 15 minutos, fossem submetidas a uma quarentena de 14 dias em suas casas e tivessem seu estado de saúde controlado, com exames de diagnóstico no começo e no final da quarentena, independentemente da presença de sintomas. Os casos positivos foram hospitalizados e isolados.

Em duas semanas foram feitos 240 testes. “Graças a ter feito exames de diagnóstico em todos aqueles que tiveram contatos de alto risco com os pacientes confirmados, além de pessoas de baixo risco com sintomas, pudemos detectar e fazer o acompanhamento de pessoas com sintomas muito leves, que provavelmente não teriam sido detectados de outra maneira”, afirmam os pesquisadores alemães.

Em Stockdorf, o primeiro foco alemão, a epidemia foi controlada em parte graças à detecção precoce e às quarentenas, que evitaram a propagação. Dois dos 16 infectados desenvolveram uma pneumonia, mas todos já estão curados. No princípio de maio, quando terminou a pesquisa que foi publicada agora, os autores disseram que a cidade continuava sem detectar nenhum novo caso associado ao foco inicial, “o que sugere que as medidas de contenção funcionaram”.

Pode ser que o controle do foco de Stockdorf tenha sido importante, como afirmou recentemente a chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel, e ajudado a ganhar tempo, mas não bastou. Pouco depois começaram chegar jovens infectados em viagens de esqui à Áustria e Itália. Em meados de fevereiro, uma festa de carnaval no Estado da Renânia do Norte-Westfalia também se tornou um foco de propagação, e o coronavírus foi se espalhando até se implantar em todos os 16 Estados federados alemães. O número de positivos já soma 174.697 na Alemanha.

O estudo, publicado na sexta-feira passada na revista Lancet, foi realizado por Merle Böhmer do Departamento de Saúde da Baviera, Udo Buchholz do Instituto Robert Koch, e Christian Drosten, o célebre virologista do hospital Charité de Berlim, entre outros. No artigo publicado na Lancet, os pesquisadores relatam ainda que pessoas que ainda não tinham apresentado sintomas foram capazes de contagiar, que o período de incubação foi muito curto ―uma média de quatro dias― e que houve falsos negativos nos exames.

Os pesquisadores acreditam que estudos como este são cruciais para compreender os mecanismos de transmissão do vírus e estimar o tamanho potencial da epidemia, para assim desenhar estratégias de contenção. A aprendizagem de Stockdorf, porém, não é muito alentadora. “Os resultados sugerem que, embora o foco tenha sido controlado, a contenção global e de longo prazo da covid-19 pode ser difícil de obter”.

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